Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quem defende a liberdade sem responsabilidade

A recente publicação de um ato do ministro da Justiça, a Portaria 264, de 9 de fevereiro de 2007, que trata da classificação indicativa de obras audiovisuais destinadas à televisão, sem estabelecer proibições nem impedir a liberdade de expansão pelos meios de telecomunicação, é mais uma comprovação do respeito dos atuais governantes pelas disposições constitucionais e legais e pelos princípios fundamentais da República que a Constituição consagra em seu artigo primeiro. Mais do que isso, a referida portaria promove o abrandamento das regras estabelecidas anteriormente, com o mesmo objetivo, por meio da Portaria 796, de 8 de setembro de 2000.


Por esses motivos, causa estranheza a reação desporporcional de representantes e defensores das empresas de telecomunicações, que tentam enquadrar a nova portaria entre as práticas de censura, o que não tem qualquer fundamento, se for levado em conta o sentido consagrado dessa expressão, nos dicionários e em documentos jurídicos e políticos, e se, a partir dai, forem examinados os termos da portaria com serenidade e imparcialidade.


Pelo que se depreende da argumentação dos acusadores, que tentam assumir a postura de defensores da liberdade, existe a intenção de criar uma imagem negativa do governo, imputando-lhe intenções ditatoriais, esperando-se, com isso, forçá-lo a abrir mão de sua competência constitucional, que é direito e dever; para regulamentar a execução, por meio de concessões a entidades particulares de fins lucrativos, de serviços públicos, como é o caso das televisões comerciais.


Base histórica


O que fica evidente, pela argumentação utilizada, é que as acusações mal disfarçam a pretensão de eliminar qualquer regulamentação ou controle e qualquer responsabilidade social, deixando às empresas exploradoras de tais serviços a mais absoluta liberdade para se orientarem exclusivamente, ou prioritariamente, por critérios econômicos.


Isso fica muito claro na argumentação de um dos mais veementes denunciadores da suposta censura, o qual, admitindo expressamente que há ‘razões econômicas’ pesando sobre as diretrizes do sistema de comunicações, usa reiteradamente a expressão ‘modelos de negócios’, que, segundo ele, precisam ser estimulados e não devem sofrer a interferência de qualquer forma de controle social.


Em reforço de sua argumentação, os acusadores tentam ridicularizar os que defendem o respeito à dignidade humana e aos valores da sociedade, como se isto fosse coisa de pessoas atrasadas e apegadas a noções abstratas e formalistas de moralidade pública. Na realidade, os valores que inspiraram a edição da referida portaria estão expressamente proclamados na Constituição brasileira, que é, de longe e sob vários aspectos, a mais democrática que o Brasil já teve e que tem sido reconhecida, por eminentes juristas de diferentes nacionalidades, como uma das mais avançadas em termos de oferecimentos de instrumentos de garantia e efetivação dos direitos fundamentais da pessoa humana.


O que se pode afirmar, isto sim, com base na história, é que os defensores da supremacia absoluta dos interesses econômicos, sem qualquer consideração pelos interesses e valores sociais e livres de qualquer regulamentação ou controle, são herdeiros dos ‘modernos’
do começo do século 19 e, aqueles que não perceberam que a liberdade absoluta e irresponsável do mundo dos negócios levaria à miséria, à marginalização, à disseminação de moléstias contagiosas e à degradação de milhões de seres humanos, inspirando movimentos de revolta e causando males que atingiriam, inclusive, as camadas mais ricas da população.


Competência legal


Em termos jurídicos, o ponto de partida para a análise da validade da referida portaria é a Constituição. Pois bem, várias disposições constitucionais proclamam e asseguram o direito à livre expansão de atividade de comunicação, independentemente de censura, como consta no artigo 5º, inciso XI. Mas também é fato que no artigo 21º, inciso XVI, a Constituição estabelece que é competência da União ‘exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão’.


O que a Portaria 264, de 9 de fevereiro de 2007, fez foi exatamente dar cumprimento a esse dispositivo constitucional, estabelecendo critérios para a classificação indicativa, o que nada tem a ver com censura. Além disso, a portaria assegura aos interessados a possibilidade de fazerem eles próprios a classificação, comunicando-a ao órgão competente do Ministério da Justiça. Se este não concordar com a classificação poderá haver recurso para um órgão superior do Ministério. Na hipótese de continuar a divergência sobre a classificação, a matéria poderá ser levada ao Judiciário, a quem competirá dizer se naquele caso concreto houve exorbitância da autoridade, anulando a decisão exorbitante e fazendo prevalecer o critério do interessado, se for o caso.


Em conclusão, não se configura aí qualquer censura ou inconstitucionalidade, mas, tão só, um ato de autoridade pública, no exercício de sua competência legal, cumprindo o dever de zelar pelo respeito à dignidade humana e pelos valores e interesses que são de toda a sociedade brasileira.

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Ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo