A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) pediu ao governo brasileiro, na segunda-feira, 10 de março, informações sobre liminares que restringem a atuação de jornalistas. O organismo internacional se baseou em denúncias que recebeu de três entidades – a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a Article 19, uma ONG de ação global pela liberdade de expressão, e o Centro para a Justiça e Direito Internacional (Cejil) – e, com sua iniciativa, repôs na ordem do dia o debate sobre o ambiente de intimidação que se agravou no País. É um assunto que não deveria esfriar até ser resolvido. Quais as raízes das hostilidades – travestidas de demandas jurídicas – contra jornalistas? Para onde elas apontam?
A ação da OEA mereceu espaço nos jornais. Segundo escreveu o correspondente da Folha de S.Paulo em Washington, Sérgio Dávila, ‘os quatro membros da CIDH estão preocupados com medidas cautelares impetradas por juízes contra jornalistas que poderiam caracterizar censura prévia, proibida pela Corte Interamericana’ (‘OEA cobra Brasil sobre ameaças à imprensa’, terça-feira, dia 11, página A6). O Estado de S. Paulo, em matéria de Roberto Almeida (‘OEA pede dados sobre processos contra mídia’, 11 de março, A7), informou que, ‘segundo estimativas do portal Consultor Jurídico, sublinhadas pela Abraji, há praticamente uma ação de indenização por danos morais para cada jornalista em exercício nos cinco principais grupos de comunicação’. Em 2007 eram 3.133 processos num universo de 3.237 profissionais.
A olho nu
Entre os casos lembrados pelas entidades, o mais clamoroso é o da jornalista Elvira Lobato, da Folha de S.Paulo. Autora de uma longa reportagem sobre a extensão do poder da Igreja Universal do Reino de Deus no mundo da radiodifusão (‘Universal chega aos 30 anos com um império empresarial’, de 15/12/2007), ela se converteu em alvo de mais de 60 processos. De uma vez. Em dezenas de cidades diferentes. Logo ficou claro que havia algum grau de coordenação entre as ações. Tanto que algumas foram rejeitadas em primeira instância e seus proponentes se viram condenados por litigância de má-fé.
‘O que mais preocupa é a articulação com intuito de intimidar a empresa e o jornalista’, declarou Paula Martins, da ONG Article 19, ao correspondente Sérgio Dávila. Ela não está sozinha. A Associação Brasileira de Imprensa, em nota oficial de 17 de fevereiro, observou que o Brasil ‘jamais assistira a uma investida partida da própria sociedade civil contra a liberdade de informação com a abrangência e o conteúdo desta’. Três dias depois, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) repudiou, ‘com veemência, a atitude da direção da Igreja Universal do Reino de Deus, que desencadeia campanha de intimidação contra jornalistas no exercício da profissão’. Agora chegam os pedidos de esclarecimento da OEA. Em tempo.
Os processos de fiéis da Igreja Universal contra a Folha e a jornalista Elvira Lobato se revestem de extrema gravidade porque, embora tenham sua origem aparente na vontade de indivíduos isolados, resultam não apenas do que vem sendo chamado de articulação; resultam da conjugação de três campos distintos que, para o bem da democracia, não se deveriam confundir: a religião, os partidos políticos e as empresas de radiodifusão – tentáculos da pregação religiosa e paixões partidárias se mesclam num movimento de implicações comerciais. As linhas se cruzam a olho nu. Assim, membros de uma igreja – a Universal –, cujos dirigentes preferem filiar-se a um partido político específico – o Partido Republicano Brasileiro (PRB) –, ganham destaque na programação da Record se entram com ações contra veículos de comunicação, alguns deles concorrentes diretos da Record ou desafetos de dirigentes e simpatizantes do PRB.
Cultura em formação
A mediação do debate público, função estrutural dos meios de comunicação, impõe a separação rigorosa entre empresas de mídia, partidos, igrejas e, principalmente, governos. Onde junções dessa ordem são toleradas, há mais risco de captura da comunicação social por interesses nocivos à atividade da radiodifusão – que, não custa lembrar, é definida pela legislação como serviço público, mesmo quando explorada por empresas privadas. Foi, bem a propósito, o que anotou o Estado de S.Paulo há menos de um mês, na sua página de editoriais (‘Apoio à intimidação da imprensa’, de 21 de fevereiro): ‘A ameaça de fundo à liberdade de imprensa reside na apropriação de um bem público, o espaço por onde trafegam os sinais de rádio e TV, por emissoras confessionais a serviço do interesse político de seus controladores’.
Por que tudo isso ocorre no Brasil? Em parte, porque, na prática, os marcos regulatórios da radiodifusão brasileira dão margem, por omissão da lei ou negligência na fiscalização, a essas monstruosidades institucionalizadas – tema central do trabalho investigativo que Elvira Lobato desenvolve. De outra parte, porque a cultura política não vê problemas na barafunda entre partidos, igrejas e televisões. Alguns políticos até dão de ombros e tratam a nova modalidade de uso do Judiciário para fins de intimidação como se fosse uma inocente busca de direitos. Outros prometem copiar a tática dos fiéis da Universal. Ensaiam-se outros flertes com o obscurantismo. O que vem agora?
A agressão à liberdade que vai virando moda é produto, é conseqüência de debilidades de uma cultura democrática ainda em formação e das lacunas de marcos legais defasados. É uma conseqüência que requer atenção redobrada para que não se desdobre, ela mesma, em causa – causa de coisa muito pior.
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Jornalista, ex-presidente da Radiobrás, doutor em Ciências da Comunicação pela USP e professor no Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade