A questão da auto-regulamentação foi crucial na discussão sobre a Classificação Indicativa dos programas de TV. As empresas de mídia queriam por que queriam cuidar sozinhas do processo – desde a classificação até o monitoramento. Perderam a parada: terão o direito de sugerir apenas uma classificação preliminar, o governo vai supervisionar sua execução, corrigir aquilo que considerar impróprio e, em caso de impasse, encaminhar a questão ao Ministério Público.
A auto-regulamentação é um estágio superior de organização social, funciona em certas esferas e, no caso da mídia eletrônica, seria aceitável em um país onde os concessionários de rádio e TV tenham demonstrado antes o seu senso de responsabilidade e respeito ao interesse público. Não é o caso da televisão brasileira, cuja folha corrida é lamentável. Sob o pretexto de ‘liberdade artística’ impera uma subserviência absoluta aos interesses comerciais.
A próxima reivindicação dos auto-reguladores é controlar a propaganda das bebidas alcoólicas na TV. Fingem que atendem às preocupações do governo com o aumento do alcoolismo, porém regulam a propaganda na TV da maneira que atenda principalmente aos anunciantes.
Assim como as raposas não podem ser encarregadas de tomar conta do galinheiro convém desconfiar de publicitários que se dispõem a limitar a publicidade de bebidas alcoólicas. Quem entende de saúde pública não são as cervejeiras nem as agências de propaganda.
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Ronaldo Laranjeira e Ilana Pinsky
O Conar não funciona para o álcool, copyright Folha de S. Paulo, 12/07/07
‘A AUTO-REGULAMENTAÇÃO da propaganda, no Brasil exercida pelo Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária), é a estratégia defendida pelas indústrias de bebidas alcoólicas como efetiva para regulamentar a promoção de seus produtos. As vantagens presumidas seriam: eficiência, maiores incentivos para obediência e custo reduzido. Esses argumentos têm sido defendidos em vários artigos recentes na mídia. É possível que a auto-regulamentação seja ‘mais eficiente do que a atuação do Estado’ em algumas áreas, mas, certamente, essa lógica não se aplica à área das bebidas alcoólicas.
Existem evidências científicas de que a exposição de crianças à promoção de bebidas alcoólicas aumenta a probabilidade de que elas iniciem um consumo precoce e bebam mais. Isso acontece em adição a outras variáveis, como baixo preço dos produtos e facilidade do acesso, mas é independente delas. Ou seja, a promoção não é o único fator que causa impacto no consumo de álcool, mas certamente é um deles. Embora inúmeras pesquisas tenham demonstrado de forma inequívoca esse fato, tal verdade não é aceita pela indústria do álcool.
Mas esse não é o único fator importante. A propaganda do álcool, principalmente a que é apreciada pelas crianças, em especial a que contém humor, se relaciona com suas atitudes e expectativas positivas quanto às bebidas alcoólicas. Isso significa que a propaganda é um fator de estruturação de atitudes das crianças em relação às bebidas alcoólicas -atitudes e crenças que não são mudadas do dia para a noite. Esse processo se dá com um acúmulo de mensagens atraentes e exclusivamente positivas e bem-humoradas em relação às bebidas alcoólicas.
Pesquisa nacional financiada pela Senad (Secretaria Nacional Antidrogas) mostra que cerca de 60% dos adolescentes brasileiros estão expostos a algum tipo de promoção de álcool (televisão, rádio, revista ou outdoor) diariamente.
Portanto, do ponto de vista da saúde pública, é fundamental que possamos exercer influência não somente no tipo de propaganda a que nossas crianças são expostas mas também -e principalmente- na quantidade de exposição. Pelo simples motivo de que, quanto maior é a exposição, maior é o consumo do álcool. É o que as pesquisas mostram.
Mas voltemos à auto-regulamentação. Os códigos relacionam-se principalmente com questões de conteúdo das mensagens, basicamente restringindo mensagens direcionadas aos menores de idade e que incentivem o consumo abusivo. Vários estudos científicos internacionais apontam que a interpretação desses códigos varia muito, dependendo do público que os avalia. Dessa maneira, e não surpreendentemente, avaliações realizadas por membros das indústrias de interesse econômico (publicitários, indústria de álcool, mídia etc.) encontram muito menos violações do que as realizadas por representantes do público geral. Pesquisa com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) recém-concluída pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) com estudantes do ensino médio de escolas públicas apontou grande número de violações em cinco propagandas de cerveja selecionadas como as mais apreciadas pelos estudantes.
Uma das recomendações do Conar com respeito à propaganda de álcool é que ela ‘evite associação com erotismo’. O leitor que já tenha assistido a algum comercial de cerveja talvez nos acompanhe na dúvida quanto ao cumprimento desse item. De qualquer maneira, a principal intenção da auto-regulamentação no caso das bebidas alcoólicas é evitar ingerência externa -leia-se restrição à quantidade de propaganda. E é a exposição, no final, o que realmente importa em termos do impacto no consumo dos adolescentes e jovens.
O ministro da Saúde, grande defensor da saúde pública, já expressou a sua preferência pela restrição da propaganda do álcool, à semelhança do que foi feito com o cigarro. Do presidente Lula espera-se que tenha a coragem e a determinação para optar pela restrição desse tipo de propaganda que estimula que menores de idade bebam. Afinal, não é a concorrência entre marcas que está em jogo, mas a saúde da sociedade brasileira.
RONALDO LARANJEIRA, 50, doutor em psiquiatria pela Universidade de Londres (Inglaterra), é professor livre docente do Departamento de Psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
ILANA PINSKY, 40, psicoterapeuta, mestre em psicologia pela USP e doutora em psiquiatria e psicologia médica pela Unifesp, é pesquisadora sênior do Departamento de Psiquiatria da Unifesp.’