Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Razões de uma separação

Após vários anos de divergências, a Transparência Brasil decidiu retirar-se da Transparency International, organização da qual era associada desde a sua fundação, em 2000.

O assunto pode parecer paroquial e de interesse restrito ao pequeno sub-universo das organizações não-governamentais dedicadas ao combate à corrupção e temas correlatos, mas não é.

O episódio fornece um interessante estudo de caso a respeito da cooperação entre ONGs. Mesmo na melhor das circunstâncias, tal cooperação é difícil. Usualmente, as ONGs diferem muito quanto à sua composição, pontos de vista, foco de atuação e mesmo capacitação, o que torna o diálogo substantivo entre elas bastante atribulado. Por isso, a quase totalidade das cooperações entre ONGs gira em torno de posicionamentos momentâneos, relativos a algum evento delimitado no tempo.

Quando se trata de colaborar mais extensamente, as diferenças de fundo inevitavelmente se explicitam. Algumas podem ser superadas pelo processo de consenso (que basicamente significa concordar em torno de algo a despeito de discordâncias que, por motivos táticos, são deixadas em segundo plano), mas outras, em particular decorrentes de choques entre princípios programáticos e mesmo ideológicos, tendem a se radicalizar.

Inócuo e arriscado

Foram divergências desse tipo que levaram à decisão da Transparência Brasil de desligar-se daquela organização internacional. Ela amadureceu após o acúmulo de divergências ao longo de vários anos, culminando, nos últimos tempos, no desenvolvimento de uma incompatibilidade que não pôde ser superada.

As intervenções da Transparência Brasil na cena brasileira, sua constante atividade de pesquisa sobre a corrupção e as diversas iniciativas mantidas pela organização voltadas para o monitoramento do Estado (como os projetos Excelências, Às Claras, Deu no Jornal e de acompanhamento de contratações públicas), são conduzidas de forma a buscar a satisfação do interesse público numa perspectiva impessoal e voltada à reforma das instituições. O que interessa à Transparência Brasil é o progresso da sociedade brasileira. Em sua ação, a entidade não privilegia este ou aquele segmento.

Já a Transparency International favorece a interação com o setor privado, o que faz por meio de programas localizados que estimulam a adesão voluntária a iniciativas isoladas.

Embora a documentação que a Transparency International disponibiliza não explicite tais preferências, suas ações exibem predileção por iniciativas típicas da responsabilidade social empresarial. Em contraste, a Transparência Brasil não se dedica a esse território. A organização considera inócuo e, no limite, arriscado, confundir o combate à corrupção com a RSE. A atuação da Transparência Brasil junto ao setor privado lhe dá a devida relevância, mas não o singulariza como interlocutor privilegiado.

Benefício da imagem

Um exemplo típico são ‘pactos de integridade’, acordos que a Transparency International apresenta como respostas ao problema da corrupção em licitações públicas. Trata-se de compromissos centrados em concorrências públicas específicas. No âmbito de um desses ‘pactos’ (por exemplo para definir qual empresa explorará uma banda de telefonia celular, ou qual construirá uma hidrelétrica), as empresas concorrentes declaram que não pagarão propinas e os agentes públicos responsáveis declaram que não receberão subornos. No processo de desenvolvimento de tais ‘pactos’, os participantes discutem as condições para habilitação à concorrência, chegando às vezes a debater preços.

Esses ‘pactos’ são promovidos e conduzidos por uma ONG (sempre associada à Transparency International), a qual costuma ser remunerada pelo Estado. É assim que funciona na Colômbia, onde o mecanismo se desenvolveu. As empresas que participam obtêm benefícios à sua imagem, por terem seus nomes relacionados a uma iniciativa que se autodeclara íntegra – como se não pagar propinas para vencer licitações não fosse obrigação automática de toda empresa, e como se assinar um papel em que se declara respeito à honestidade impedisse tratativas secretas entre empresas e agentes públicos.

Como outras iniciativas que a Transparency International promove, os pactos de integridade têm também a função de aproximar o setor privado da ONG promotora, com a esperança de melhorar as chances desta última de obter financiamentos – pois, como regra geral (evidentemente, há exceções), empresas privadas preferem financiar iniciativas nas quais identificam um benefício direto para sua imagem.

Regulamentos e práticas

Em alguns países, os promotores dos pactos de integridade procuram condicionar a própria participação de empresas em licitações públicas à adesão ao acordo – pretensão que tem sido contestada com sucesso na Justiça daqueles países.

A Transparência Brasil sempre combateu esse tipo de iniciativa, expondo sua vulnerabilidade, sua evidente propensão a ser capturada por cartéis e a ausência de impacto sobre os condicionantes institucionais e gerenciais que de fato determinam a integridade do ambiente em que licitações acontecem. Além disso, é óbvio que a ONG promotora é sujeita a conflito de interesses, uma vez que patrocina o instrumento, é paga para administrá-lo e não é sujeita a incentivos para criticá-lo.

Os pactos de integridade da Transparency International são particularmente favorecidos quando se trata de transações comerciais internacionais, que são prioritárias para a organização. Já a Transparência Brasil, embora considere que as transações internacionais sejam um terreno importante de incidência de corrupção, adota a esse respeito a mesma atitude que governa a sua estratégia em relação ao ambiente interno brasileiro. A busca por maior integridade nas relações comerciais internacionais, notadamente nas licitações públicas, somente se conseguirá pela intervenção nos regulamentos e nas práticas gerenciais dos Estados e das agências financiadoras multilaterais e bilaterais.

Autonomia e independência

Por exemplo, o arcabouço normativo que governa os empréstimos do Banco Interamericano de Desenvolvimento torna-os vulneráveis à corrupção, o que exige uma ação concertada sobre aquela instituição que, infelizmente, não tem sido empreendida.

Entre as bilaterais, o BNDES brasileiro tem avançado consideravelmente nos mercados da região latino-americana por meio da adoção de políticas de financiamento de obras de infra-estrutura em outros países que não são dotadas das necessárias condições de prevenção da corrupção. A Transparência Brasil tem procurado combater tais práticas, tanto internamente quanto internacionalmente, sem que, no entanto, a Transparency International se movesse.

Diferenças entre prioridades e pontos de vista podem ser relevados quando há tolerância mútua quanto a tais diferenças. Contudo, a Transparency International, na prática, adotou uma política organizacional e uma projeção de imagem internacional que a situa no ápice de uma estrutura hierárquica à qual as organizações nacionais suas associadas são induzidas a submeter-se – ao passo que a Transparência Brasil é ciosa de sua autonomia e independência.

‘Pactos de integridade’

Como o Brasil é um país importante, a Transparency International tem ambições programáticas que incluem o país, em particular regionalmente. Tais ambições se traduzem principalmente na promoção de pactos de integridade entre empresas transnacionais que atuam no mercado latino-americano, entre as quais empresas brasileiras. Como a Transparência Brasil não participa desse gênero de iniciativa, estabeleceu-se um conflito intransponível entre as estratégias das duas organizações.

Com a não-resolução desse tipo de divergência, os posicionamentos da Transparência Brasil e da Transparency International passaram crescentemente a colidir no plano público. Por exemplo, a divulgação de índices e diagnósticos por parte da Transparency International cada vez mais adotaram uma perspectiva primeiro-mundista, pouco informada e por vezes factualmente falsa, a respeito do Brasil, o que várias vezes obrigou a Transparência Brasil a esclarecer ao público, aos entes multilaterais e às instituições brasileiras que não reza pela mesma cartilha.

Não havia, assim, solução possível senão interromper a associação entre as duas entidades. A separação serve ao interesse de ambas. A Transparency International fica com o terreno livre para promover o que queira com parceiros alinhados com os seus pontos de vista, e a Transparência Brasil deixa de se ligar a uma entidade com cujos programas e perspectivas discorda.

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Jornalista, diretor executivo da Transparência Brasil