Na quarta-feira (10/11), preso a uma cadeira de rodas, Mikhail Beketov ouvia em um tribunal de Moscou as acusações por difamação. Editor do diário Khimkinskaya Pravda e autor de uma série de artigos sobre a destruição da floresta de Khimki, a noroeste da capital russa, o jornalista virou réu por ter dito que o prefeito da cidade, Vladimir Strelchenko, tentava intimidá-lo. A respeito das apurações das circunstâncias que levaram o saudável Beketov a necessitar da cadeira de rodas, pouco (ou quase nada) se sabe. Em novembro de 2008, o jornalista sofreu uma agressão brutal. O espancamento causou-lhe sérios danos: teve traumatismo craniano, perdeu uma perna e vários dedos das mãos. Durante dois anos, submeteu-se a várias cirurgias. Nesse meio-tempo, a polícia não conseguiu identificar nenhum envolvido no espancamento. Enquanto isso, Strelchenko manteve a ação por difamação e foi bem-sucedido. Beketov acabou condenado a pagar 5 mil rublos (cerca de 300 reais) ao prefeito de Khimki.
Segundo a mídia russa, neste ano foram reportados 60 casos de violência contra jornalistas. Desde o início do mês, dois jornalistas e um ativista político foram brutalmente espancados. O caso mais grave, e de maior repercussão, é o de Oleg Kashin, do jornal Kommersant. Isso se deve à popularidade do repórter, que, a exemplo de Beketov, cobria os desmatamentos em Khimki para viabilizar a construção de uma rodovia entre Moscou e São Petersburgo.
O primeiro passo para acabar com a ‘impunidade’
A indignação geral deve-se ainda ao fato de as cenas da inaudita violência contra Kashin terem sido transmitidas na internet. Em seguida, foram reprisadas por redes de televisão. As imagens do sábado (6/11) mostram como um dos dois agressores manteve Kashin no solo enquanto o outro lhe desferiu cerca de 50 vigorosas pancadas com uma barra de ferro. Com traumatismo craniano, fraturas nas mandíbulas, numa perna e em vários dedos, o jornalista permanece em coma induzido.
Dois dias antes do atentado contra Kashin, Konstantin Fetisov, ativista de um grupo contrário ao desmatamento de Khimki, foi igualmente espancado. Ante a repercussão, o presidente Dimitri Medvedev anunciou a formação de um comitê para investigar o ataque contra Kashin. ‘Quem quer que esteja envolvido nesse crime será punido, independentemente de seu cargo, posição na sociedade ou méritos’, declarou Medvedev. Thorbjorn Jagland, secretário-geral do Conselho da Europa, declarou: ‘Estou bastante encorajado pela forte posição tomada contra esses ataques pelo presidente Medvedev.’
Segundo recente relatório sobre a mídia russa publicado pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), com sede em Nova York, o Kremlin tem de dar o primeiro passo ‘fundamental’ para acabar com a ‘impunidade’ de agressores. Medvedev e o premier Vladimir Putin devem não somente ‘condenar todos os ataques contra a imprensa’, mas colocar um fim em ‘tentativas de marginalizar e criminalizar o jornalismo crítico’.
Favorável a tediosos monólogos
Mas haveria essa disposição? O jornalista Slava Alekseyev afirma que na época da União Soviética ‘sabia-se quais eram as consequências ao criticar o regime: destituição ou prisão’. Agora, diz ele, ‘essas ameaças cederam lugar ao assassinato de indesejáveis’. A diferença seria a ausência de regras hoje.
De acordo com o CPJ, 19 assassinatos de jornalistas permanecem não solucionados na Rússia desde 2000. Um dos motivos para a investigação do caso Kashin tem sido a pressão internacional. O Departamento de Estado dos EUA e a Anistia Internacional condenaram a agressão contra o repórter do Kommersant. O cantor Bono Vox, engajado líder da banda irlandesa U2, tem se manifestado contra o desmatamento de Khimki.
Para Alekseyev, um dos suspeitos das agressões contra Kashin e Beketov é o movimento pró-Kremlin Nashi (‘nosso’). ‘Trata-se de um agrupamento como a juventude hitlerista, que na Alemanha nazista exterminava os inimigos do regime sem recorrer ao tribunal.’ Algo como os esquadrões da morte no Brasil, compara Alekseyev. Para Yulia Latynina, da rádio Ekho Moskvy, o primeiro suspeito é o prefeito Strelchenko, o mesmo a processar Beketov.
Nem todos têm elos com o Kremlin. Mas seria uma coincidência o aumento da violência com a chegada à presidência de Vladimir Putin, em 2000? Anna Politkovskaya, repórter do diário Novaya Gazeta, assassinada em 2006, escreveu logo após a retumbante vitória de Putin nas eleições presidenciais de 2004: ‘Dentro de poucas horas, esse típico tenente-coronel da KGB… ascenderá ao trono da Rússia mais uma vez. Sua visão é estreita e tipicamente aquela provinciana de alguém da sua patente.’ Politkovskaya acrescentava que Putin, reeleito presidente Putin II, espiona seus próprios colegas, é ‘vingativo’, um czar avesso a diálogos e favorável a tediosos monólogos.
Incentivo a uma imprensa independente
O judoca Putin, com seu passado de espião, é adorado e detestado no seu país. Certo, porém, é o seguinte: desde sua chegada ao poder, reina um sinistro clima nos meios jornalísticos. E se atualmente Medvedev ocupa a presidência e Putin a cadeira de premier, a falta de regras claras parece prevalecer.
Como explicar, por exemplo, os confrontos do Kremlin com Alexander Lebedev, um dos donos do Novaya Gazeta? Horas antes de vir à tona a notícia do espancamento do jornalista Kashin, no dia 6, a polícia havia invadido um banco e um hotel de Lebedev. Para Dmitry Muratov, editor-chefe do jornal, a invasão do banco é uma forma de intimidar Lebedev.
O caso de Lebedev lembra o de Mikhail Khodorkovski, presidente da gigante de petróleo Yukos, preso por fraude fiscal em 2003. Khodorkovski, de 47 anos e ainda atrás das grades, foi encarcerado por financiar partidos políticos de oposição a Putin. Caso contrário, como explicar a caterva de empresários a sonegar impostos que continuam soltos?
Da mesma forma, Lebedev, também dono dos diários britânicos The Independent e The Evening Standard, parece querer estimular uma imprensa independente no seu país. Nos últimos anos, três repórteres investigativos do Novaya Gazeta foram assassinados.
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Jornalista, correspondente de CartaCapital em Paris