Faz 11 anos que me vinculo à USP e à UNESP, agora como aluna de doutorado do Instituto de Psicologia (USP). Nesta última década, constatei duas grandes evidências nestas instituições: sua desigualdade e heterogeneidade. A imprensa não as tem explorado suficientemente e o meio mais direto de abordá-las, no curto espaço deste texto, é recorrendo à singularidade da memória.
Em 2000, enquanto na minha turma unespiana de Psicologia apenas uma colega foi contemplada com bolsa de iniciação científica (não obstante os interessados fossem muitos), na turma de Fonoaudiologia-USP 11 garotas recebiam algum tipo de auxílio às suas pesquisas. Isso porque o curso de Fono liga-se, direta ou indiretamente, às unidades de atendimento do chamado Centrinho (Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais), um importante centro de pesquisa e tratamento com 65.789 pacientes matriculados até dezembro 2005.
Neste ambiente, havia um ritmo louco de estágios (na época, 13 ao todo), muitas verbas, punhados de aprimorandos e mestrandos trabalhando de graça ou quase, relações pessoais pautadas pela competição, hierarquia rígida e modelo quase-empresarial. À primeira vista, um modelo de ‘gestão’, como querem os epígonos do neoliberalismo. Mas há que se refletir sobre tais critérios de qualidade.
‘Normalidade’ e ‘distúrbio’
Os pacientes do Centrinho são, em sua maioria, oriundos das classes pobres. Boa parte de suas mães não tiveram boa qualidade de vida e assistência pré-natal na gravidez, as quais são causas significativas das ditas anomalias craniofaciais – hoje, com baixíssima incidência nos países desenvolvidos. Tal hospital especializado, extremamente caro, jamais seria mantido por universidades privadas, ou com recursos privados: se o Centrinho, e mesmo o curso de Fonoaudiologia, oferecem excelente nível técnico de atendimento aos portadores de anomalias craniofaciais, estes recursos devem ser custeados pelo Estado, pois isso se liga ao planejamento do sistema SUS e ao atendimento de saúde em nível terciário.
Na pior das hipóteses, caso houvesse gestão público-privada, ainda sofreriam a rapina de terceirizações e fundações. Os custos do tratamento transcendiam amplamente a capacidade de pagamento dos pacientes, fossem estes do Centrinho, ou os do curso de Fonoaudiologia propriamente dito, que tinha duas outras unidades de atendimento. À época, nós, alunos de graduação da USP, tínhamos um custo calculado em R$ 3.000,00/mês.
Bem, você, Contribuinte Imaginário, confuso entre as informações midiáticas para quem o aluno de universidade pública é um privilegiado mauricinho, acredita que tudo isso foi revertido em ‘proveito nosso’? Bah! Como tudo o mais que concerne à pobreza e à formação cultural, o impacto – mesmo o imediato e pragmático – da produção universitária tende a ser invisível e muito pouco explicado para a população em geral.
Mas nem tudo eram flores: no curso de Fonoaudiologia que se vinculava ao Centrinho vicejava uma formação tecnocrática. A maioria de minhas colegas formou-se sem ter a oportunidade de discutir de forma aprofundada temas como políticas públicas de saúde (que se relacionam às causas dos problemas fonoaudiológicos propriamente ditos) e – pasmem! – até qual seria a melhor opção para o desenvolvimento da criança deficiente auditiva (se a LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais, ou a oralização), fato que, penso eu, baseava-se numa sensação geral de que o tratamento fonoaudiológico deveria ser, ‘obviamente’, necessário.
O curso também não nos proporcionou, por exemplo, uma crítica da construção histórica da oposição entre ‘normalidade’ e ‘distúrbio’ e o papel da profissão frente a isso. O que muitas de minhas colegas, hoje fonoaudiólogas, chamariam de ‘dislexia’ ou ‘distúrbio de leitura e escrita’, para mim não passa de uma conseqüência da péssima educação brasileira traduzida numa fictícia linguagem técnica.
Público e privado
Enquanto isso, sofríamos na Psicologia da UNESP com a falta de professores, de assistência estudantil e com a repartição desigual dos recursos entre as unidades do próprio campus. Tal como no curso de Fono, questiono alguns dos conteúdos que tive de aprender (discordância que, penso eu, é própria a qualquer universidade), mas foi através daquele curso que comecei a refletir sobre a qualidade e a natureza dos projetos de extensão que a universidade pública deve oferecer, ligadas à indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão.
Nos poucos projetos com recursos para funcionar, e nas disciplinas propriamente ditas, colocaram-se em pauta discussões de excelente nível sobre a função do psicólogo no Brasil hoje, sobre democracia, políticas públicas, conceitos de saúde mental, entre muitos outros temas que uma educação tecnocrática não pode proporcionar.
Acompanhar a cobertura de imprensa sobre a ocupação na USP lembrou-me que o público em geral nem mesmo suspeita dessa heterogeneidade e desigualdade, tão óbvia para nós, a homogênea e privilegiadíssima ‘comunidade universitária’ cujos alunos custam pelo menos R$ 5.000,00/mês. Ora, um aluno das fundações da FEA e outro do Diretório Acadêmico da FFLCH são tão parecidos quanto um pingüim e uma água-viva. Só compartilham o meio em que nadam.
Os contribuintes, mal-informados pela grande mídia, tanto estão financiando o Centrinho quanto algum discutível projeto que, com financiamento eminentemente público, pode vir a beneficiar exclusivamente esta ou aquela empresa privada. E, chuva de contradições, o tal contribuinte paga também a formação de cooperativas de emprego e renda, as quais podem ser gestadas na própria FEA, aquela mesmo, das questionáveis fundações. Sim, indignado cidadão, é preciso conhecer a universidade. É preciso discutir sua produção e avaliar seu financiamento. Mas que isso também se aplique às relações entre público e privado, ao fato de o sr. José Aristodemo Pinotti, hoje secretário de Ensino Superior, ter sido reitor da FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas) e ocupar hoje cargo de presidente do Instituto Metropolitano de Altos Estudos (Imae) da referida Faculdade (veja aqui).
Noticiários equivocados
No entanto, o noticiário televisivo da Globo (22/5) limitou-se a enfatizar a ilegalidade da ocupação na reitoria e a criar certo clima de novela: quando, afinal, a polícia distribuirá as borrachadas? Os alunos resistirão ou não? A falta de informação em geral é espantosa: leio os comentários nos blogs, para cujos autores – não sei se enganados, ou distraídos diante de tantas informações irrelevantes – os alunos das universidades públicas são uma massa compacta de privilegiados histéricos que quer ainda mais.
Na TV Globo, especial destaque para as cenas de confronto entre o professor de Física e os alunos, uns atirando carteiras nos outros. Nesta matéria, excepcionalmente, nenhum professor das universidades públicas paulistas aparece na TV para comentar coisa alguma: é um economista da Fundação Getúlio Vargas quem ‘explica’ os decretos serristas, em exatos cinco segundos. Nenhum representante dos alunos fala do assunto – e outros noticiários têm o mesmo perfil.
O subtexto mostra que a baderna está instalada na USP e os corruptos dos alunos não querem que as contas da universidade sejam fiscalizadas – esta que é a única e benéfica mudança trazida pelos decretos do santo José Serra, que, ao invés de criar e expandir cursos públicos de Pedagogia, paga a mensalidade de cursos privados para que alunas de Pedagogia se tornem auxiliares em salas de alfabetização. Sim, contribuinte justamente indignado: há recursos públicos financiando as universidades privadas, no plano federal e estadual; universidades cujo fim principal é enriquecer seus proprietários; sobretudo, universidades que financiam campanhas eleitorais. Mas, como são anunciantes poderosos, você dificilmente terá oportunidade de ouvir o debate destes fatos na grande mídia.
O olhar que faz a universidade tornar-se uma casa da ‘mãe-deputada’ é absolutamente contrário à realidade da USP. Há regras tanto da própria instituição quanto das agências de fomento à pesquisa: o auxílio para participação em eventos e as regras de prestação de contas às agências são rígidas, embora em grau variável (pode-se conferi-las, por exemplo, nos sites da FAPESP e CNPQ). Os noticiários televisivos, que subliminarmente indicam que não há controle dessas contas, são completamente equivocados.
Democratizar o conhecimento
Digo que já há vários anos, a ‘opinião pública’ (em que pese a generalidade do conceito) acostumou-se com as greves na universidade. Creio que elas são absolutamente necessárias, mas a cobertura jornalística acomodou-as entre o Dia das Mães e o da festa de São João, com potencial para pilhar algumas tímidas linhas/segundos ao noticiário do Dia dos Pais.
Diante dessas greves, que vêm se tornando a principal estratégia de reivindicação de docentes, alunos e funcionários – mas já foram quase naturalizadas na mídia – avalio a ocupação como uma forma positiva de atrair a atenção geral para o sufoco da universidade. A ocupação teve o mérito de colocar a crise na mídia – uma crise que nunca foi tão profunda. Sugiro aos leitores interessados uma visita ao blog da ocupação, já mencionado, que fornece boas explicações dos decretos de José Serra.
Vamos, então, ao debate sobre a autonomia e diversidade da universidade pública (que, de certa forma, são sinônimos), começando por admitir que ela é um dos fundamentos da diversidade da própria sociedade brasileira. O indignado contribuinte, oprimido por este discurso único da Veja e seus blogueiros, talvez se pergunte por quê seu dinheiro deve sustentar metidinhos que, preguiçosamente escarrapachados nas régias dependências da Fefeléchi (FFLCH), debatem temas obscuros como semiótica ou fonética russa. Bem, eu também não sei quase nada desses assuntos, mas lembro ao meu Contribuinte Imaginário que alguns de nossos melhores tradutores do russo, Boris Schnaiderman e Paulo Bezerra, saíram da FFLCH e que suas traduções são fruto indireto daquela cultura institucional. Tal cultura só se cria ao longo de muitos anos, mas pode facilmente ser destruída com algumas canetadas que definam prioridades puramente pragmáticas e alheias ao funcionamento da própria universidade.
Se, contudo, nosso Contribuinte Imaginário não vê importância nisso, não tem filhos com complexas anomalias craniofaciais (que não são cobertas por qualquer plano de saúde) e não quer perder seu tempo lendo Dostoievski, que se esqueça completamente dos bancos hospitalares e assista às borrachadas policiais e moças nuas na TV, deixando o Dostoievski para outros contribuintes que – longe de serem mais inteligentes – desejam, sem dúvida, outros tipos de experiência.
Se as pobres moças nuas são mais populares que Dostoievski ou Machado de Assis, temos que debater, sim, qual o preço dos livros, como desenvolver o gosto pela leitura, como se estruturam as mídias e a propaganda, qual o papel da universidade nisso tudo. O tema concerne à presença do público e do privado no Estado brasileiro e a universidade pública não é santa, nem diaba, nem é homogênea, mas precisa ser democratizada como um dispositivo de formação que, em algum grau, ainda é plural, serve para democratizar o conhecimento, prioriza a fermentação ideológica e concretiza inúmeros direitos constitucionais. Algo muito além do que a mera expedição de diplomas para ‘patricinhas'(!) ou elaboração de pesquisas atreladas à necessidade imediatista e arbitrária do partido que esteja no poder.
P.S.: Sobre a discussão de autonomia universitária, um excelente texto é o de Marilena Chauí: ‘A universidade pública sob nova perspectiva‘
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Pesquisadora, São Paulo, SP