Na página 212 do volume III do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), divulgado no ano passado, aparece o retrato 3×4 de um jovem de cabelos pretos e rosto sério. Ele é Milton Soares de Castro, único civil a participar da guerrilha do Caparaó, na divisa dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, a primeira tentativa de levante armado contra a ditadura civil-militar brasileira. Castro foi preso no dia 1ª de abril de 1967, junto com outros sete companheiros, e levado para a Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora (MG). No dia 28 de abril, apareceu morto. Versão oficial: suicídio. Seu corpo sumiu. Milton Soares de Castro se tornou um desaparecido político. E é assim que o guerrilheiro é identificado no relatório final da CNV.
Contudo, desde 2002 a jornalista mineira Daniela Arbex vem reescrevendo as versões oficiais sobre a morte e o desaparecimento do militante político. Numa premiada série de reportagens publicada na “Tribuna de Minas”, de Juiz de Fora, ela relatou que o corpo de Castro estava enterrado na sepultura 312, quadra L, do cemitério municipal da cidade. Enterrado numa cova rasa, como se fosse um indigente. Depois de 35 anos, documentos da empresa funerária e da prefeitura comprovavam a localização do corpo. No entanto, como a família optou por não fazer a exumação, a CNV continuou a considerá-lo um desaparecido.
Tese sempre foi questionada pela família e amigos
A história que Daniela começou a contar em 2002 se encerra agora com o livro recém-lançado “Cova 312 – A longa jornada de uma repórter para descobrir o destino de um guerrilheiro, derrubar uma farsa e mudar um capítulo da história do Brasil” (Geração Editorial). Na obra, a jornalista desmonta a tese criada pela ditadura de que Castro se suicidou, sempre questionada por sua família e companheiros, além de recuperar a trajetória da guerrilha do Caparaó e da Penitenciária de Linhares, um dos principais centros de detenção do regime autoritário e pouquíssimo conhecido, por onde passaram nomes hoje notórios, como o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, e o prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda.
– Naquela época, avancei até a localização da sepultura, o que foi uma grande descoberta. Usaram até o nome de um sargento que já tinha dado baixa do Exército para enterrar o corpo. Falo sempre que essa história tinha terminado no jornal, mas não dentro de mim. Faltava coisa para ser contada. Como ele morreu? A versão do suicídio era contestada por todo mundo. Precisava de uma prova forte – conta Daniela, em entrevista por telefone da redação da “Tribuna de Minas”. – Foi nessa nova investigação que cheguei à prova fundamental do assassinato, a foto da necropsia do Milton. Consegui localizar os peritos e provar o assassinato dele. E, mais do que isso, o livro acaba abrindo as portas da Penitenciária de Linhares. Resgato a rotina da penitenciária, um dos centros de detenção mais importantes e mais desconhecidos da ditadura.
Milton Soares de Castro, segurando uma mochila, junto com os outros guerrilheiros do Caparaó após serem presos – Arquivo Público do Estado de São Paulo/Divulgação
Autora de “Holocausto brasileiro” (Geração Editorial), livro-reportagem em que investigou a história do Hospital Colônia, um hospício em Barbacena (MG) onde 60 mil pessoas morreram no século XX, a jornalista conta que tinha apenas uma vaga ideia de que o presídio da cidade havia funcionado como prisão política e não conhecia a história do guerrilheiro. Ela afirma que a escolha dos temas decorre não do fato de ser mineira, mas da busca por histórias ainda não contadas.
– Meu próximo livro não será uma história local, mas nacional. O que me move é lutar contra o silenciamento, desenterrar e trazer à tona o que a sociedade esquece.
Operário que virou guerrilheiro
Milton Soares de Castro cresceu numa família humilde em Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul. Apesar de só ter completado o primário, sempre se interessou por política. Em 1965, aos 23 anos e já morando em Porto Alegre, ele passou a frequentar reuniões na Associação Operária e Cultural da Vila Jardim, bairro popular que recebia os recém-chegados à capital. Foi nesses encontros que conheceu as ideias de Marx e Engels e seus futuros companheiros de luta política, como os ex-sargentos Amadeu Felipe da Luz Ferreira e Araken Vaz Galvão. Os militares, cassados após se rebelarem contra o golpe em 1964 e ligados ao ex-governador Leonel Brizola, defendiam a derrubada do governo militar pelas armas.
O jovem operário abraçou os ideais e a luta armada. Em setembro de 1966, Castro partiu para a Serra do Caparaó, na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo. Primeiro dos 13 membros do grupo a chegar, sua missão era fazer o reconhecimento do local onde a guerrilha deveria se instalar. No entanto, as baixas temperaturas da região e a estrutura precária foram minando as forças do grupo. No Natal de 1966, houve as primeiras desistências. Em março, dois membros foram presos pela Polícia Militar mineira após desertarem. Em 1º de abril, os oito combatentes que sobraram foram presos sem resistir. Era o fim da aventura no Caparaó.
– Esses homens estão praticamente no anonimato. Há um livro sobre a guerrilha (“Caparaó: a primeira guerrilha contra a ditadura”, de José Caldas da Costa, lançado em 2007) e só. Sobre o Milton, não se sabia quase nada, apenas que ele era considerado o menos preparado por não ter formação militar – diz Daniela Arbex.
Corredor da Penitenciária de Linhares, que hoje abriga presos comuns, em Juiz de Fora (MG) – Fernando Priamo/Divulgação
A transferência dos presos no Caparaó e de outros militantes políticos para a Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora, não foi à toa. É na cidade que está localizada a Auditoria da 4ª Região Militar, que guarda mais de 100 mil processos de 1821 até hoje. A auditoria concentrou as investigações abertas em Minas durante a ditadura contra os acusados de subversão. A reunião de tantos militantes no presídio gerou novas formas de organização e resistência à solidão e à dura rotina do cárcere.
‘República Comunista de Linhares’
Linhares foi a última parada de membros de diferentes grupos da luta armada, como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e o Comando de Libertação Nacional (Colina), após passarem por sessões de tortura em instalações policiais e militares. Muitos chegavam destruídos física e emocionalmente à penitenciária, onde encontravam solidariedade e acolhimento dos companheiros que lá estavam, conta a jornalista. Organizados em coletivos setoriais, tudo era discutido e votado. Os alimentos vindos de fora eram repartidos por todos. O então estudante Marco Antônio Azevedo Meyer, militante do Colina, apelidou o presídio de “República Comunista de Linhares”.
Foi da penitenciária mineira que saiu também a primeira denúncia feita por presos políticos sobre as atrocidades cometidas pelos militares, o “Documento de Linhares”. Escrito no fim de 1969, o manuscrito foi apreendido pelos guardas. Contudo, em março de 1970, começou a circular nos Estados Unidos. Não se sabe quem conseguiu colocar o documento em circulação.
– Conversei com as pessoas que assinaram a denúncia. O documento ganhou importância mundial e elas sofreram com o vazamento. Depois desse episódio, começaram a censurar até as visitas. Colocavam grades duplas, o chamado parlatório, para separar os familiares e os presos. Foi cruel demais. Além de toda tortura e violência, eles eram impedidos de abraçar os próprios filhos.
Dos 40 presos políticos trocados pelo embaixador alemão, sequestrado em 1970, seis saíram da Penitenciária de Linhares – Divulgação
Entre 1964 e 1979, o único preso a morrer em Linhares foi Milton Soares de Castro. A notícia do seu suicídio correu o país e ficou na memória de quem passou pelo cárcere de Juiz de Fora. Contudo, seus companheiros e sua família nunca acreditaram na versão oficial. O guerrilheiro do Caparaó foi retirado da sua cela para depor na noite de 27 de abril de 1967. Na manhã seguinte, durante a revista, seu corpo foi encontrado pendurado com o lençol enrolado no pescoço. Da madrugada anterior, restou um depoimento de duas páginas assinado por Castro.
As inconsistências da versão de suicídio eram muitas e a jornalista decidiu revisá-las. No ano passado, Daniela recebeu de Gilney Amorim Viana, então assessor da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e o preso político que mais tempo ficou em Linhares, parte do inquérito policial militar aberto no dia da morte do guerrilheiro, que ela nem sabia existir após mais de dez anos de investigação. Depois de varrer arquivos em Minas, Rio e Brasília, descobriu onde estava o processo original: no Superior Tribunal Militar. Faltava romper as barreiras da burocracia.
– As tentativas de obstrução me impressionaram. Tudo é muito burocrático. Tive que justificar o pedido de informação e o tribunal levou dois meses para me dar a autorização. Vivemos em uma democracia, mas as dificuldades permanecem.
Fim da farsa do suicídio
Nos anexos, havia 15 fotografias feitas durante a necropsia. O laudo apontava morte por enforcamento, mas não falava em suicídio. A farsa começava a cair. A jornalista foi atrás dos três responsáveis. Um já estava morto, outro não quis colaborar. Já o ex-perito da Polícia Civil, Luzmar Valentim de Gouvêa, de 78 anos, não lembrava do caso, mas analisou as imagens e foi categórico: as marcas no pescoço eram compatíveis com enforcamento, não com suicídio. E havia outro problema: como um homem com mais de 1,80m se enforcaria numa torneira a 1,20m do chão e um pano de 30cm? Gouvêa garantiu que era impossível. Entretanto, permanecem obscuras as circunstâncias da morte de Castro – que guardam semelhanças com a do jornalista Vladimir Herzog anos depois, em 1975, no DOI-CODI , em São Paulo.
– Os depoimentos dão conta do despreparo do Milton para enfrentar a prisão, os interrogatórios. Os companheiros do Caparaó eram mais treinados para se controlar. Há relatos de que ele teve uma discussão com o major Ralph Grunewald Filho, que presidia o inquérito. O Milton não aceitou as provocações e partiu para o embate. Mas ainda há muitas contradições sobre como ele foi encontrado morto. Isso tudo é intrigante – afirma Daniela.
Entre tantas dúvidas, há uma certeza: Milton Soares de Castro foi mais um morto sob custódia do Estado brasileiro durante a ditadura militar.
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Leonardo Cazes, do Globo