A falta de recato com a própria intimidade, revelada sem pejo em algumas páginas da internet, nas telas do Big Brother e nas traseiras de automóveis, onde se veem grudadas figurinhas representativas da composição da família proprietária, constitui, em um primeiro olhar, exercício de direito à auto-exposição. Pondero, para a reflexão do leitor, que o abuso desse direito à imagem escancarada poderá levar à supressão do direito fundamental à privacidade, abrindo espaço para a ditadura do monitoramento oficial ilimitado. A perda de espaço destinado à intimidade, como se lembram os que leram 1984, é característica de regimes autoritários.
Sociedades democráticas prezam os direitos de minorias, em especial o direito da menor minoria possível, que é o indivíduo. Não foi por acaso que, pós-ditadura, a Constituição destinou seu dispositivo mais extenso à tutela de direitos individuais: o artigo 5º tem 78 incisos e diz, ao fim, que o rol não é exaustivo, o que confere a todos nós proteção contra o Estado, que não pode atentar contra a intimidade do cidadão, bisbilhotando, sem autorização judicial, sua movimentação bancária ou suas comunicações telefônicas; se o fizer, o indivíduo pode recorrer ao Judiciário para resguardar seus direitos.
O descuido poderá ser fatal
É, contudo, no exagerado exercício individual do direito de abrir mão da privacidade que mora o problema. Se considero normal informar ao estranho que vai à traseira do meu carro que somos cinco em casa, como poderei exigir da loja da esquina a manutenção em segredo do cadastro que lá preenchi? Por que o fiscal do Imposto de Renda deveria se privar de vasculhar minha conta corrente se tuíto a todos os que me ‘seguem’ o quanto gastei no final de ano em determinado shopping? Como sustentar que a polícia não pode ouvir minhas conversas telefônicas se divulgo detalhadamente todos os meus pecados, fotografados ou filmados, no Orkut?
Em resumo: se não velo pelo que me é próprio, pela minha intimidade, por que o Estado estaria obrigado a velar? A resposta, por ora, está na vigência da lei, que me autoriza a divulgar meus segredos e veda ao Estado acesso indiscriminado à minha intimidade. Mas a legitimidade da lei está no eco que seus comandos encontram na sociedade. Se a norma visa proteger o que o indivíduo não se importa mais em perder, a vida da tutela ao direito será curta. Ao abrir reiteradamente mão do resguardo da intimidade como vetor de vida, o cidadão, sem perceber, leva a sociedade para um modelo autoritário, em que o indivíduo e a privacidade não importam.
Já que, por definição, se descartam intervenções que substituam o próprio cidadão nas decisões sobre sua intimidade, a solução está no alerta para que, em nossas condutas, cada um preze um pouco mais por sua privacidade. Esse cuidado responsável e voluntário não trará prejuízo. Já o descuido poderá ser fatal até para a democracia!
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Advogado criminal e professor do curso de pós-graduação da GVLaw, foi diretor vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)