Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ricardo Gomes e o carnaval da ambulância

A mão esquerda que ampara o rosto tenta disfarçar de si mesmo e de olhares alheios a vertigem e a dor. Tenta apagar da mente os vultos e apagões que se infiltram na vista. A cabeça parece dobrar de tamanho numa enxaqueca exponencial.

Reincidente. Denuncia um novo problema cerebral à vítima. A mão esconde também sua preocupação. Os movimentos mal obedecem ao comando nervoso. Na tentativa de relatar a falha, se dá conta de que as frases se dissipam na língua antes que cheguem aos ouvidos de seus inquisidores. “Qual é o seu nome? Lembra de mim? Diz para mim, qual o seu nome?”

Ricardo Gomes tenta responder, mas a boca não obedece. A voz perde a força. O ar exalado soa como o último suspiro de um saxofone desafinado, soprado por uma criança. O tempo se perde na tentativa de autoconhecimento de um novo corpo. Estranho. De um novo eu. Agora, os policiais que o amparam são vistos pela metade. Não pela vertigem. A pálpebra direita se força a fechar, em consequência do acidente vascular cerebral. Censurado por si próprio, se deixa dominar completamente pelo desespero. Mudo, é incapaz de demonstrá-lo.

A impotência aumenta quando percebe que o lado direito não mais se movimenta. Torna-se impossível ir sozinho até a ambulância. Os curiosos e a imprensa à frente não permitiriam, de qualquer forma. Policiais e médicos pedem distância. A movimentação alerta o técnico do Vasco da Gama para sua própria saúde. Crítica. Sem forças, ele é carregado até a porta lateral da CTI móvel. Atrás dela, na porta de fundos, o fotógrafo clica a imagem que será capa do caderno de esportes no dia seguinte. Seu gosto é discutível, mas sua presença é inegavelmente um contra-senso.

Caminho impedido

Uma barreira humana iluminada por flashes

Afinal, na outra ponta do mesmo fenômeno, o repórter de TV abre o microfone e repassa a informação dos especialistas: a situação exige cuidado e distância para não deixar o doente ainda mais afobado. Pressão arterial: 19 por 12.

O zoom da câmera fotográfica seria suficiente. A invasão é desnecessária. A imagem da transmissão ao vivo que ilustra a narração do repórter se mantém do início ao fim da fala. Depois disso também. Fixa na tela outro contra-senso. No empurra-empurra, o cinegrafista ignora o aviso e mantém Ricardo Gomes em quadro. Uma legião de profissionais da mídia o rodeiam, clicando, filmando e perguntando. Máquinas em punho sobre as cabeças. Dezenas delas em volta da ambulância.

A tragédia quebra o protocolo e a Globo perde a exclusividade das primeiras entrevistas. O monopólio acordado com a CBF perde o sentido e repórteres de várias emissoras de rádio e TV cercam a ambulância. No afã de informar, a mídia torna-se um obstáculo. Pena que não haverá autocrítica.

Acabada a partida, os melhores momentos das concorrentes não podem durar mais de um minuto e só vale mostrar o que aconteceu dentro de campo. Fica impossível analisar a formação tática dos jornalistas, escalados no “abafa” pelos seus comandantes. Mas, pelo replay, vê-se que ninguém largou o gravador para estender a mão ao ser humano inerte.

Nenhum jornalista abriu caminho para a ambulância. Pelo contrário, formou-se uma barreira humana iluminada por flashes.

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[Gabriel Góes Barreira é estudante de Jornalismo, Rio de Janeiro, RJ]