Tão freqüente que passou a ser rotina. As críticas ao sistema público de saúde quase sempre começam pela pintura da porta do hospital, mas invariavelmente acabam na crucificação dos médicos que lá trabalham. Antes que se consolide o pensamento ‘corporativista’ em sua mente, não quero isentar os médicos de qualquer responsabilidade pelo caos, mesmo os que lá não trabalham e ainda assim falham, por omissão ou indiferença. Todavia, tentarei mostrar que, há algumas décadas, a saúde e seus processos dependem de outros fatores humanos, tecnológicos e administrativos, e não mais apenas das mãos e mentes dos citados profissionais.
O maniqueísmo no julgamento do atendimento em saúde parece se espalhar como um vírus irresistível, dicotomizando as opiniões entre ‘quase Deus’ e ‘pilantras mercantilistas’, deixando sua imaginação trocar à vontade as palavras entre aspas. Além da terceirização da culpa (não foi a doença que vitimou, foi o médico), colocam na conta do médico o mau funcionamento da tecnologia, a lentidão da burocracia pública, o uso inadequado do dinheiro do Sistema Único de Saúde, o desabastecimento das farmácias e almoxarifados, a evasão de profissionais qualificados para compor equipes e a incapacidade de multiplicar-se para dar a atenção adequada a todos os casos que lotam o seu setor.
Um imobilismo cínico
Na responsabilidade do médico podem ser creditadas a indiferença para com os movimentos políticos da categoria, a disseminada necessidade de fingir que trabalha enquanto finge que é pago por isso, a distorcida e limitada visão sobre o atendimento ao público, além da piora da capacitação técnica, promovida pela proliferação de vendedores de diplomas disfarçados de faculdades, respaldados pela inoperância dos conselhos e concordância dos ministérios. A falta de caráter ou de escrúpulos não é uma propriedade da categoria, mas da sociedade, seja qual for a profissão.
Poderíamos compreender a revolta explosiva de quem vê um amigo doente ser mal tratado no hospital público, mas não dá para aceitar placidamente a culpa e as simplificações estúpidas que partem dos corações desesperados e das mentes oportunistas. A falta de interesse e representação política da classe médica, especialmente nos últimos 10 anos, levou a um imobilismo cínico da categoria, cujo ‘movimento de resistência’ é utilizar o emprego público para esperar um melhor, ou abandoná-lo completamente em prol da medicina privada (problemas diferentes), ou ainda dividir sua força de trabalho em pequenos pedaços de carga horária, escondendo-se de opinar e olhando com interesse genuíno em direção aos seguros contra processos de erro médico, uma indústria tão nova quanto promissora.
Informação mais completa
Não há um só dia em que não se publiquem notícias sobre a situação da saúde pública, com ênfase no Rio de Janeiro, onde está instalada a maior rede pública de todo o SUS. Entretanto existe um incômodo silêncio sobre que tipo de remuneração existe e qual trabalho esta deveria pagar. Discute-se o salário dos deputados, dos juízes, dos jogadores de futebol, até o impacto do salário mínimo na distribuição de renda, mas não há considerações sobre quanto vale o trabalho de um profissional de saúde. Já formam uma turma de tamanho considerável aqueles que partiram em busca de concursos de nível técnico fora da área de saúde, além dos novos médicos-estudantes de Direito, em busca de melhores salários em áreas específicas da profissão e, quem sabe, de uma categoria de profissionais que ainda se dê ao respeito. Resta saber se esta população em fuga aprenderá seus direitos e deveres ou se contaminará seus novos colegas pela indiferença ou inação adquiridas na profissão anterior.
Sugiro à mídia parar de simplificar suas análises, interromper seus julgamentos sumários e garantir uma informação mais completa e diversificada sobre a saúde pública do país. Eu, pelo menos, já me cansei de ver fotos de infiltrações nas paredes e agressões aos médicos e enfermeiros. Afinal, estes são apenas sinais externos, resta investigar corretamente para chegar à(s) causa(s) e depois aos possíveis tratamentos. Se existirem.
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Médico, Rio de Janeiro, RJ