O jornalismo é o “campeão mundial da transparência pública”. Da transparência pública dos outros. Na base, está seu papel de alimentar a vitalidade democrática, que nos últimos 200 anos exigiu dos profissionais, ainda que a muito custo, a defesa, manutenção e consolidação de valores indispensáveis à controvérsia pública: a fidedignidade aos fatos, a acurácia, a precisão, as versões distintas e seguidamente antagônicas sobre os mesmos eventos/acontecimentos. Com isso, diz-se que a credibilidade é consequência da legitimidade que a profissão ganhou perante a sociedade… e que estaria acima de vários outros interesses.
O desligamento da organização não governamental Repórteres Sem Fronteiras pela Unesco e destacada pela revista CartaCapital em meados de março, confirma algo que precisaria mais destaque e não tanto esconderijo: os campeões mundiais da transparência pública precisam ser mais transparentes.
Historicamente, há razões muito conhecidas para que muitos – não todos – “campeões mundiais da liberdade de expressão”, comandados pelos empresários da mídia, não gostem muito de esclarecer fatos obscuros que os envolvam: constrangimentos internos, influência de anunciantes, sociedade com outros ramos da produção que se tornam acionistas, pressões políticas, econômicas e ideológicas. Mas a exclusão da RSF do quadro social da Unesco amplia o debate: quem investiga os jornalistas? Quem investiga as empresas privadas jornalísticas que se beneficiam de acordos com governos e outros centros de poder, inclusive armamentistas?
Velhos ideais
Uma organização como a RSF, que elabora rankings sobre violência, crimes e censura contra profissionais em todos os continentes, deveria ser financiada, como se comprovou, pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos e , como desdobramento, com forte influência da CIA , a central de inteligência norte-americana?
Obviamente que não. Exigir transparência, mas não ter; catalogar países como atentatórios à liberdade de expressão ou imprensa e desconsiderar casos de censura e boicote à informação – além da perseguição clara a profissionais – como nos Estados Unidos, onde se fecham rádios, proíbem matérias, engajam-se em guerras patrióticas contra a informação isenta, coloca em xeque a própria legitimidade da informação jornalística e a representatividade da profissão.
No cruzamento dos negócios como sobrevivência com a informação de interesse público, é fácil dizer que todos poderão ser jornalistas ou que a profissão está acabando. A ONG Repórteres Sem Fronteiras ajuda muito para comprometer o jornalismo. E para colocar em xeque os rankings sobre a liberdade de imprensa em todo o planeta.
Sempre há um financiamento por perto. Sempre houve. E nunca houve, em nenhum lugar do planeta, um jornalismo totalmente isento. Mas na era dos conglomerados e das pulverizações informativas, onde proliferam abundantes informações, na era do “adicione um amigo”, talvez falte ao jornalismo adicionar mais inimigos. Ou seja, tentar recuperar os velhos ideais de “afligir os satisfeitos e satisfazer os aflitos”.
Não combina
Se é uma utopia supor que, sendo um negócio, será possível fazer isso, certamente a diversidade de abordagens, de fontes, de temáticas e de propriedade precisem certo empurrão do Estado para garantir a própria vitalidade democrática, baseada em políticas de comunicação que apontem em tal direção. O governo brasileiro parece sentado em cima de avanços para a área.
Enquanto isso acontece, corre solto o apoio do governo norte-americano, da CIA e de outros centros de poder para que o jornalismo se engaje cada vez mais em suas causas que, sem contexto e esclarecimento, reforçam valores muito particulares sobre o presente e o futuro de cada sociedade.
O fundamentalismo informativo não combina com o “olho público” que historicamente legitimou o jornalismo.
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[Francisco José Castilhos Karam é professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS]