A ONG Repórteres sem Fronteiras – que já foi definida pelo jornal Le Monde como ‘uma espécie de Anistia Internacional especializada na defesa dos direitos dos jornalistas’ – divulgou na semana passada seu relatório anual no qual classifica os países segundo parâmetros que medem a liberdade de imprensa [ver ‘Liberdade de imprensa – A classificação mundial de 2006‘].
Como vimos, nessa última classificação, que avalia a situação real da liberdade de imprensa no mundo no período de 1º de setembro de 2005 a 1º de setembro de 2006, o Brasil piorou. Passou da 63ª posição à 75ª devido a mortes e perseguições a jornalistas.
No grande mapa-múndi feito pela ONG, os países em cor branca são considerados em boa situação (entre eles Canadá, Suécia, Noruega e Finlândia); em amarelo, estão os que apresentam uma situação mais para favorável (França, Espanha, Chile, Argentina, Bolívia, Paraguai, Estados Unidos); em laranja estão os que têm problemas sensíveis (Brasil, Marrocos, Peru, Venezuela, Índia e Indonésia); em vermelho estão os países considerados em situação difícil (Rússia, Paquistão, Somália, Filipinas, Colômbia) e, finalmente, em preto, os países considerados em situação muito grave (entre eles China, Cuba Arábia Saudita, Irã, Síria, Coréia do Norte, Uzbequistão e Líbia, entre outros).
Apuração detalhada
Controlando a liberdade de imprensa em mais de cem países, Repórteres sem Fronteiras precisa dispor de uma vastíssima rede de observadores. Para traçar um retrato fiel da situação de cada país, quatro pessoas devem responder a um questionário padrão de 50 perguntas.
Paul Jurgens é o correspondente de Repórteres sem Fronteiras no Brasil, além de trabalhar como pesquisador de um instituto de pesquisas brasileiro e ser correspondente do Courrier International. Benoît Hervieu – que fala perfeitamente o português e é encarregado das Américas na sede parisiense de Repórteres sem Fronteiras – explica que Jurgens envia pequenas sínteses sobre a situação do país ao escritório de Paris. Para o Brasil, além de Jurgens e Hervieu, responderam ao questionário-padrão dois jornalistas e/ou professores universitários.
Os quatro pesquisadores-jornalistas responderam a perguntas como: número de jornalistas assassinados; número de jornalistas assassinados em que o Estado estaria envolvido; número de jornalistas que fugiram do país; casos de jornalistas seqüestrados ou usados como reféns; penas de prisão por delitos de imprensa previstos pela lei; censura ou apreensão de jornais estrangeiros; existência ou não de um órgão oficial de censura prévia e sistemática (toda a mídia é previamente controlada); monopólio da televisão pelo Estado (sim/não); casos de demissões abusivas de jornalistas da imprensa pública (sim/não); limitação excessiva de investimentos estrangeiros no setor da informação; casos de violação do segredo das fontes; imposição de medidas de filtragem aos provedores de acesso; fechamentos de sites internet no ano que passou; número de ciberdissidentes.
ONG acima de qualquer suspeita?
Para a defesa da liberdade de expressão e da vida de milhares de jornalistas no mundo inteiro, a ONG Repórteres sem Fronteiras (RSF) tem correspondentes e informantes tanto onde a liberdade de imprensa está ameaçada e o trabalho dos jornalistas cerceado, quanto onde a imprensa trabalha livremente. Todos os anos, esses correspondentes ajudam a compor o quadro que resulta no livro-relatório A liberdade de imprensa no mundo, que revela a situação da mídia em 120 países.
Fundada em 1985, em Paris, pelo jornalista e ex-militante da Liga Comunista Revolucionária (LCR) Robert Ménard, RSF zela como um cão de guarda pelo trabalho dos jornalistas e pela liberdade de imprensa. A ONG esteve à frente da campanha bem-sucedida para libertar três jornalistas franceses reféns de terroristas no Iraque, em 2004 e em 2005.
Mas em setembro deste ano, Repórteres sem fronteiras – que tem por missão fiscalizar e apontar problemas – virou vidraça: a ONG foi acusada de ser financiada por dólares de Washington, por intermédio de um instituto denominado NED (National Endowment for Democracy), supostamente infiltrado pela CIA.
Publicada na internet no site Réseau Voltaire, a informação reapareceu numa matéria de CartaCapital que trata de um suposto caixa 2 das ONGs. Repórteres sem Fronteira foi citada entre as ONGs estrangeiras que ‘estariam por trás de campanhas para derrubar Hugo Chávez e Fidel Castro’.
Em sua sala no escritório da ONG em Paris, Ménard diz-se chocado por não ter sido procurado pela revista para responder às acusações que qualificou de ‘tecido de mentiras’.
Entre os erros apontados está a informação de que Lucille Morillon é uma executiva da NED que informa que RSF recebeu por três anos dinheiro do Instituto Republicano Internacional (IRI). Robert Ménard não contém sua indignação:
– Lucille Morillon não trabalha para a NED, ela trabalha para Repórteres sem Fronteiras há muito tempo. Ela é nossa representante nos Estados Unidos. E não recebemos um centavo do IRI. Essa matéria tem mentiras grosseiras. Essa informação de financiamento vem do Réseau Voltaire, organização que nega que tenha havido atentado contra o Pentágono no 11 de Setembro. Isso é um absurdo, mas é o que eles defendem. Recebemos da NED (National Endowment for Democracy) e do Centro por Cuba Livre (Center for Free Cuba) apenas 2,5% do nosso orçamento. O autor dessa matéria não veio nos procurar. Isso é uma maneira estranha de fazer jornalismo. Por que ele não ouviu os acusados? Quem é esse jornalista para dar lições de jornalismo e de honestidade? – pergunta Ménard.
A matéria de CartaCapital não poupa nem Robert Ménard nem sua ONG, muito respeitada pela imprensa francesa. RSF foi acusada de estar por trás de campanhas contra Chávez e Fidel Castro.
– O dinheiro da NED nos ajuda a defender jornalistas presos na África. Esse caro colega não escreveria isso se conhecesse jornalistas na África que necessitam de advogados, de médicos, de dinheiro para as famílias. A gente recebe dinheiro do Centro para Cuba Livre não para fazer campanha contra Fidel Castro e sim para libertar 23 jornalistas presos em Cuba, o país onde há mais jornalistas presos, depois da China. Nosso trabalho é tirá-los da prisão.
Quando se argumenta que o Centre for Free Cuba não daria dinheiro a RSF se a ONG não denunciasse perseguições a jornalistas feitas pelo regime de Fidel Castro, Ménard reage :
– Ninguém pergunta por que Repórteres sem Fronteiras recebe dinheiro do governo alemão ou da União Européia. Isso por acaso choca algum jornal brasileiro? Por que eles se chocam que recebamos dinheiro do governo americano? Por acaso ele é menos democrático que o governo francês ou o governo alemão?
Hotel Palestina
Depois de defender com veemência seu orçamento que tem apenas 6% vindo de fonte pública, o secretário-geral parte para o ataque:
– Essa mídia de esquerda só se interessa por Cuba. Por acaso vieram nos perguntar por que a gente denuncia o regime do Turkmenistão? Ninguém veio. Simplesmente porque a esquerda brasileira e a mídia de esquerda não estão nem aí para o Turkmenistão. A única coisa que lhes interessa é [Hugo] Chávez e Fidel Castro. No ano passado tratamos da informação em 120 países. Cuba é apenas um dos 120 países pelos quais nos interessamos.
Como entidade de utilidade pública, RSF é controlada pelo governo francês quanto ao financiamento, informa Ménard.
– É preciso que o jornalista que escreveu essas mentiras saiba que 94% do nosso orçamento vem da mídia. Não desse órgão que publica mentiras, não é ele que vai nos ajudar a tirar jornalistas das prisões da África.
Para completar seu orçamento, RSF vende revistas de fotos em 30 países do mundo, o que representa 60% dos recursos que obtém.
Acusado por CartaCapital de não ter defendido o jornalista Sami Al-Hajj, da TV al-Jazira, preso, torturado e vítima de abusos sexuais em Guantánamo, Robert Ménard se defende:
– Não é verdade. Fui várias vezes a Doha encontrar os responsáveis pela TV. Fomos os únicos a defendê-los, inclusive quando o correspondente deles foi condenado à prisão na Espanha. Basta ir ao site de RSF. Escrevemos um longo relatório quando a aviação americana bombardeou o Hotel Palestina em Bagdá. Fizemos uma investigação que durou seis meses. Não poupamos de forma nenhuma os Estados Unidos.
Posição parcial
A matéria dos dois jornalistas americanos que deu origem à matéria brasileira é acusada por Ménard de ser semeada de mentiras.
–Acho que podem escrever o que quiserem porque defendo a liberdade de imprensa. Mas não entendo como uma revista séria possa repetir todas as mentiras deles sem vir nos entrevistar ou ao menos consultar o site.
Ele acusa a revista de fazer política distorcendo fatos:
– Minhas idéias políticas não estão em jogo, o que quero é que quando houver atentado à liberdade de imprensa em Cuba, na Venezuela, nos Estados Unidos, na França, na Alemanha ou no Brasil, Repórteres sem fronteiras possam intervir. Não tenho nada a dizer sobre o que se passa em Cuba no momento. A única coisa que digo é que há 23 jornalistas presos e nosso trabalho é obter a libertação deles. Quando a jornalista Judith Miller foi presa nos Estados Unidos, fui lá defender a libertação dela. Essas pessoas que criticam não fazem jornalismo. Isso é uma posição política, partidária, parcial e desonesta. Não defendo um discurso de direita ou de esquerda. Defendo a possibilidade de expressão. Se essa mesma revista que hoje nos calunia vier a ter um problema, seremos os primeiros a defendê-la.