Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Sarcófagos motorizados

Os jornais de sexta-feira (25/11) estão, como sempre, abarrotados de anúncios. Com a moda do “black friday” chegando ao Brasil, os anunciantes usam a mídia impressa dos diários para transformar rapidamente a novidade em tradição, tentando incentivar o brasileiro a adotar o hábito de consumo dos americanos de acampar em frente às lojas que fazem promoções antecipadas de Natal.

Como ocorre regularmente nas edições dos fins de semana, proliferam anúncios da indústria automobilística. Mas chama atenção também uma reportagem, publicada na maioria dos diários, sobre pesquisa realizada por um instituição ligada à Federação Internacional do Automóvel, organização civil de motoristas quase tão antiga quanto a indústria de veículos a motor.

E o que diz a pesquisa? Simplesmente que a maioria dos carros fabricados na América Latina são verdadeiros sarcófagos ambulantes. Na explicação técnica, leia-se que, numa avaliação da segurança dos veículos na qual a nota máxima é 5, a maioria dos carros que circulam por aqui recebeu a nota mínima – 1 estrela.

“Uma estrela – isso quer dizer motorista morto”, declarou aos jornais David Ward, secretário-geral da Global NCAP, a entidade responsável pelo estudo.

Bom serviço

O Programa de Avaliação de Carros Novos, que realiza regularmente testes em carros europeus, constatou que muitos modelos vendidos no Brasil e em outros países da América Latina não possuem itens básicos de segurança, como airbags, e apresentam estruturas deficientes que deixam sob risco motoristas, passageiros e principalmente crianças.

Os carros mais vendidos na América Latina apresentam níveis de segurança que ficam vinte anos atrás dos padrões “cinco estrelas” que se tornaram comuns na Europa e na América do Norte, informa a entidade, segundo a Folha de S.Paulo.

Carros com airbag e freios com sistema antitravamento oferecem mais chance de sobrevivência a seus ocupantes em caso de colisão. Sem esses itens, observa o representante da entidade, os riscos de morte ou de ferimentos graves são muito mais altos.

O jornal paulista lembra que o número de mortes em acidentes rodoviários no Brasil foi de 40.610 pessoas, no ano passado, um aumento de quase 25% em relação aos dados de 2002, o ano em que começou o crescimento econômico do país, que deu grande impulso à indústria automobilística.

É preciso observar, por outro lado, que os jornais prestam um bom serviço ao dar seguimento a essa informação. Embora a notícia merecesse maior destaque, é de se notar que, apesar de a indústria automobilística representar um cliente importante na receita de publicidade dos jornais, a notícia que coloca o setor em situação de constrangimento não foi omitida dos leitores.

Aventura de alto risco

Curiosamente, no mesmo dia em que a informação sobre a falta de segurança dos carros nacionais chegava às redações, a Rede Globo destacou, em seus telejornais, uma pesquisa da Fundação Dom Cabral, instituição mineira de educação executiva, afirmando que, na maioria dos acidentes rodoviários, a culpa não é da falta de manutenção das estradas, como se afirma corriqueiramente, mas da imprudência dos motoristas. No entanto, o jornal O Globo resolveu ignorar essa pauta e apostou no estudo sobre a precariedade dos carros vendidos na América Latina.

A Anfavea, que representa as montadoras, e a Fenabrave, associação dos distribuidores brasileiros de automóveis, não atenderam a todos pedidos de entrevistas. O Estadão, que também publicou a notícia, lembra que, no ano passado, quando um estudo semelhante sobre nove modelos de automóveis mostrou resultados igualmente ruins, a Anfavea questionou os critérios das análises, alegando que não se pode comparar produtos vendidos em mercados diferentes, “portanto, com exigências legais diferentes”.

A instituição afirma também que as montadoras brasileiras cumprem integralmente os requisitos legais de produção no país. Nenhuma palavra, claro, sobre o lobby da própria indústria automobilística no Congresso Nacional, a boicotar qualquer tentativa de aumentar as exigências legais de segurança e controle ambiental para a fabricação de automóveis.

O poder de persuasão da indústria é a principal causa do atraso da legislação de proteção aos consumidores, em todos os setores da economia. No caso da indústria de automóveis, as pressões de entidades de defesa dos direitos civis e profissionais de saúde conseguiram recentemente convencer o governo a mudar as regras e, a partir do ano que vem, entram em vigor novas exigências de segurança para os veículos produzidos no Brasil, conforme lembra o Globo.

Considerando-se as deficiências constatadas no estudo, cada viagem de uma família brasileira a bordo de um desses carros equivale a uma aventura de alto risco.

O tema inspira pautas mais ambiciosas, levando-se em conta o fato de que os acidentes rodoviários são uma das principais causas de mortes violentas no Brasil, principalmente entre os jovens.