Ao transferir a decisão sobre a censura ao jornal o Estado de S. Paulo para a Justiça do Maranhão, o Tribunal do Distrito Federal anunciou uma decisão que só pode envergonhar o país.
Com essa medida, o jornal continua sob censura – mas ninguém assume a responsabilidade de tomar a única providência cabível no caso, que é cumprir a Constituição e suspendê-la.
Com essa atitude, perdem o país e os cidadãos. Os brasileiros conviveram amargamente com a censura prévia do regime militar. Naquele tempo, os jornais não podiam publicar notícias que não agradavam ao regime. Determinados cantores populares não podiam ter seus nomes mencionados. Lideranças envolvidas em atos de resistência ao regime também eram banidas da mídia – por atos de força.
Alguns veículos se adpataram e passaram a praticar a autocensura. Outros, que insistiam em exercer um direito que lhes pertencia, publicavam as notícias que consideravam relevantes e foram obrigados a enfrentar a censura. Um desses veículos foi o Estado, que, com um censor na redação, selecionando e proibindo reportagens, publicava poemas de Camões.
Eu trabalhava no Jornal da Tarde, na época. Publicava-se, ali, receitas culinárias.
Lembro que as matérias proibidas ficavam penduras num mural, no centro da redação.
Língua rica
Não vivemos sob uma ditadura, é bom recordar. A censura não é uma política de governo, mas um recurso que empregado ao sabor de conveniências de momento, em função de interesses políticos específicos.
Não é inofensiva, porém. Para empregar uma imagem usada, muitas vezes de forma imprópria, a censura contra o Estado é um ovo de serpente. Hoje, proíbe notícias sobre Fernando Sarney, o filho do presidente do Senado investigado pela Polícia Federal. É ingenuidade imaginar que vamos ficar nisso. Até porque já não é a primeira vez, nem a segunda, nem a terceira. Estamos criando, na verdade, uma perigosa rotina. Recentemente, o colunista José Simão foi proibido de mencionar o nome de uma atriz em seus textos.
Qual será a próxima proibição? Impossível adivinhar. Mas é certo que virá. A experiência demonstra que não faltam autoridades com problemas a esconder nem juízes capazes de acolher seus apelos, ainda que possam representar uma afronta à Constituição e as liberdades que ela garante.
Essa proibição é especialmente grave, porém. Envolve um assunto de interesse público e possui uma repercussão política evidente. São aspectos que ajudam a definir a censura como absurda, vergonhosa – mas inaceitável. Como jornalista, como cidadão, eu acho isso. Inaceitável.
É desumana como a fome e canalha como a falta de caráter.
Outras pessoas dizem que é ‘inadmissível’. Também se define como uma decisão ‘medieval’ e como ‘insanidade.’ Ainda bem que a língua portuguesa é riquíssima neste aspecto e não faltarão adjetivos para quem quiser protestar.
Bom exemplo
A mesma sentença que prevê a censura definiu uma multa em caso de desobediência: R$ 150.000 por reportagem publicada. É um valor caríssimo, de quem pretende inviabilizar todo e qualquer esforço para resistir a um abuso inacreditável nos dias que correm.
Mas confesso que a idéia de viver num país onde a censura existe me provoca mal-estar. Hoje de manhã, minha imaginação começou a dar voltas. Imagine se, numa homenagem aos tempos em que publicava receitas culinárias e versos de Camões, o Estadão resolvesse publicar uma grande reportagem proibida – e depois fosse à Justiça brigar contra o pagamento da multa, em nome, exatamente, da liberdade de expressão.
Do ponto de vista financeiro, seria um caso comparável a um dos melhores sambas de Paulo Vanzolini, o filósofo que se disfarça de grande cientista e maior compositor.
Relatando o caso de um sujeito que teve a carteira furtada na praça da Sé, Vanzolini observa que, apesar da perda em dinheiro, o prejuízo ‘foi de graça,’ pois lhe permitiu livrar-se de ‘um mal que me perseguia’.
Acordei pensando neste mal que nos persegue, morrendo de vontade de ler reportagens censuradas. Juro que não é só uma coisa psicológica, de atração pelo proibido, coisa que todo psicólogo de botequim pode diagnosticar – e que até poderia ajudar a aumentar as vendas. Acho que seria aquilo que os garotos inteligentes chamam de atitude. Seria um bom exemplo e uma forma de ensinar as novas gerações que, apesar de tudo, a liberdade não tem preço.
Francamente, você acha que o jornal teria alguma perda no episódio?
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Jornalista, diretor da sucursal de Brasília da revista Época