Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Sem hesitações de consciência

‘A mídia passou a ser uma inimiga do Congresso, uma inimiga das instituições representativas.’ A declaração do presidente do Senado, José Sarney, publicada no Estado de S.Paulo no dia 16 de setembro, teve a repercussão de um acinte. Foi retrucada em editoriais, em revistas, em todo lugar. Foi assunto de capa do caderno ‘Aliás’ de domingo (20/9). Ainda assim, há mais o que falar a respeito.


Em tese, as palavras do senador não seriam um disparate. Elas não se aplicam, nem de longe, ao Brasil de hoje, mas o regime de propriedade dos meios de comunicação pode, sim, entrar em contradição com a democracia. Foi com esse tipo de preocupação que, em março de 1934, os congressistas dos Estados Unidos fundaram a Federal Communications Commission (FCC). Desde então, o objetivo da agência reguladora americana não tem sido outro que não o de impedir formas sutis ou ostensivas de monopólio na área das comunicações, para assegurar a pluralidade de vozes e a concorrência saudável entre as diversas empresas do setor.


Se um só grupo econômico açambarca o controle das principais estações de rádio e TV numa determinada região, ele açambarca, também, o poder informal de direcionar o debate público segundo seus interesses privados. É nesse sentido que se costuma dizer que as legislações antitruste, aplicadas às comunicações, protegem a boa concorrência e a livre formação da opinião pública. O princípio é justo, tanto que faz parte do receituário democrático de vários países.


Controle familiar


A potencial contradição entre mercado e democracia, portanto, não é uma hipótese sem fundamento. Ela é conhecida e, desde muito tempo, sabe-se que só pode ser contida por meio da lei. Sem uma lei que os contenha, os monopólios tendem a tutelar a opinião pública e, numa ironia autofágica, podem sufocar até mesmo a livre-iniciativa dos que não digam amém a eles, monopólios.


No Brasil, já no ocaso da ditadura militar, tivemos um exemplo que se tornou clássico das distorções que os meios de comunicação podem gerar quando se divorciam da sociedade civil. No primeiro semestre de 1984, milhões de pessoas adensaram comícios nas capitais brasileiras, exigindo eleições diretas para presidente da República. Com exceções pontuais, as redes de TV, lideradas pela Rede Globo – que, na época, desfrutava a confortável condição de um monopólio tácito –, demoraram a registrar jornalisticamente as manifestações populares e, desse modo, ajudaram a ditadura a derrotar no Congresso a emenda que restabelecia as diretas (os brasileiros só reconquistariam o direito de votar para presidente em 1989).


Em 1984, enfim, o núcleo da radiodifusão brasileira, dependente das concessões da ditadura, acabou por se opor ao Estado de Direito. A ‘mídia’, alguém poderia dizer, agiu como ‘inimiga’ da democracia. Mas isso não foi declarado, naquele ano, pelo então presidente do PDS, a antiga Arena, o partido da ditadura, de nome José Sarney.


Em junho, após a derrota da campanha das Diretas-Já, ele, ao comando do PDS, virou vice na chapa de Tancredo Neves, que disputaria a eleição indireta para a Presidência da República. Tancredo venceu, mas nunca foi empossado. Um dia antes, internou-se às pressas no Hospital de Base, em Brasília, para morrer em questão de semanas. Quem tomou posse foi o vice. Que virou presidente. Mais adiante, sua família se tornaria dona da afiliada da Rede Globo no estado do Maranhão. Sem hesitações de consciência. Nos anos 1980 e 90, afinal de contas, a ‘mídia’ não era ‘inimiga das instituições representativas’. Ao contrário, até dava uma forcinha.


Reações furiosas


Agora, na voz do presidente do Senado, esse discurso de ‘mídia inimiga’ adquire uma sonoridade de dadaísmo político. Para começar, falta-lhe precisão semântica. O que é que se quer designar com esse novíssimo substantivo, ‘mídia’? Seria um sinônimo de imprensa? Se sim, vamos com calma. ‘Mídia’ e ‘imprensa’ constituem objetos distintos. A ‘mídia’, um aportuguesamento da pronúncia inglesa da palavra latina media (meios), plural de medium (meio), é um vocábulo que, rigorosamente, não deveríamos pronunciar nunca. Deveríamos falar simplesmente ‘meios’. Seria mais claro e menos afetado.


Mas a tal ‘mídia’ conseguiu ingresso no dicionário. E, lá, engloba todos os meios e todos os seus conteúdos, dos outdoors às telas de cinema, dos programas de auditório aos caminhões com alto-falante que anunciam pamonhas, dos jornais diários às propagandas de automóveis coladas nas poltronas de avião. Dizer que essa imensidão de mensagens e veículos se tenha voltado contra o Congresso Nacional é apenas uma sandice. Não faz sentido nenhum.


Já a imprensa é uma instituição à parte, estabelecida pela vigência da liberdade de expressão e do direito à informação. Ela tem seu corpo nos jornais e nas revistas, nas emissoras de rádio e televisão, nos blogs e no debate público, mas sua dimensão maior, não corpórea, é mesmo a liberdade. A imprensa responde pela mediação dos debates de interesse comum na esfera pública, a mesma esfera de onde saem os representantes do povo. A instituição da imprensa não representa o povo, ao menos não o representa como os senadores e deputados, que recebem delegação formal para isso. A imprensa vive junto com o povo, refletindo e emulando os diferentes pontos de vista que animam a esfera pública. A imprensa dá voz, amplificada, às perguntas que a sociedade tem direito de dirigir ao poder, o mesmo poder em que ora se encontram certos senadores que reagem com fúria às indagações dos eleitores.


Tudo isso apenas para dizer que, não, a imprensa não é inimiga das instituições representativas. Ela tem sido, isso sim, sua melhor – e às vezes única – amiga. Inimigos das instituições democráticas são os patrimonialistas que as parasitam – e aqueles que os acobertam.

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Jornalista e professor da ECA-USP