Aldous Huxley morreu no dia 22 de novembro de 1963. Naquele dia, porém, o mundo inteiro só foi informado de uma notícia assustadora, que tomou conta de tudo.
A cegueira é tema recorrente em todas as literaturas. Mas o primeiro cego de que tomei conhecimento foi Sansão, na Bíblia, juiz em Israel por vinte anos. Apaixonado por Dalila, ele lhe conta que sua força está nos cabelos, jamais cortados. Comprada pelo príncipe dos filisteus, tradicionais inimigos de Israel, a traidora, aproveitando que Sansão está dormindo, conta o segredo aos corruptores. Eles vêm, furam os olhos do inimigo que sempre os vencia e o levam para dançar no templo do deus Dagon. Ali, guiado por um menino, Sansão derruba o edifício onde eles se divertiam às suas custas e mata soterrados três mil filisteus. Naturalmente, morre também.
Em 1949, Cecil B. DeMille, diretor de clássicos como Os Dez Mandamentos e Cleópatra, deu-nos Sansão e Dalila. No filme, Dalila faz tudo por amor, inclusive os sofrimentos que inflige a Sansão.
Filósofo e santo
Aldous Huxley escolheu para título de seu romance Sem Olhos em Gaza, publicado em 1936, um verso de Sansão Guerreiro, de John Milton, publicado em 1671, no mesmo ano de O Paraíso Reconquistado. Perseguido, preso e cego, Milton não pôde escrever e ditou seus livros, dos quais o mais conhecido é O Paraíso Perdido.
Huxley já era famoso quando publicou Sem Olhos em Gaza. Amigo de figuras como o filósofo Bertrand Russel e o romancista D. H. Lawrence (autor de O amante de Lady Chatterley), já tinha publicado Admirável Mundo Novo, escrito em apenas quatro meses, em 1931.
O escritor teve uma grave doença nos olhos aos 16 anos e quase ficou cego também. O tema, as personagens e as tramas da distopia de Admirável Mundo Novo devem ter sido alimentados pelos anos em que viveu na Itália de Mussolini. Nascia ali – e na Alemanha de Hitler – o totalitarismo moderno, que controla tudo, uma antevisão aterradora dos anos que viriam, ainda que sem o aviso ‘sorria, você está sendo filmado’.
Sem Olhos em Gaza trata da cegueira geral da Humanidade. Seus personagens são aristocratas decadentes, novos-ricos pretensiosos, intelectuais arrogantes e arrivistas diversos. É esse pequeno mundo que cerca o protagonista, Anthony Beavis, misto de filósofo e santo, que emite juízos devastadores sobre os contemporâneos.
O atoleiro do mundo
Huxley não evitou guerra alguma, mas coube a mais um cego ver melhor do que muitos e explicar o que poucos viam. Em 1958, já sofrendo muito do câncer que o mataria, esteve no Brasil, visitou Brasília em construção, as favelas do Rio, os índios de Mato Grosso. Na volta publicou Brave New World Revisited (Admirável Mundo Novo Revisto).
No apreensivo final de 2008, todos estamos com os olhos em Gaza, mais especificamente na Faixa de Gaza, onde recrudesce a guerra milenar entre árabes e judeus.
Mas com certeza haverá boas coisas a lembrar para 2009. No dia 22 de novembro de 1963, só nos foi informado o assassinato de John F. Kennedy. Contudo, naquele mesmo dia, acompanhado apenas de Mateus (filho de sua primeira mulher, Maria) e de Laura, sua segunda mulher, era sepultado Aldous Huxley, autor de 47 livros, muitos dos quais nos ajudaram a compreender o mundo e a exorcizar alguns dos mais terríveis fantasmas, entre os quais os ovos das serpentes que a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler chocavam, e que desembocariam na Segunda Guerra Mundial.
Em 2009, fiquemos com Olavo Bilac, que abençoou quem ‘descobriu a Esperança, a divina mentira, dando ao homem o dom de suportar o mundo!’.
Que Barack Obama não tenha o destino de Kennedy e que ajude a tirar o mundo do atoleiro em que Bush nos enterrou.
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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de Cultura e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século); www.deonisio.com.br