No rastro de matéria publicada neste Observatório (‘O controle da internet é necessário?‘), resolvi acrescentar as reflexões seguintes.
É certo que estamos numa época assinalada pelo ‘tempo das mutações’. Como tal, torna-se inevitável que se promovam abalos em conceitos e preceitos consolidados por uma tradição cultural e jurídica. Contudo, existem princípios que, dada a sua amplitude ética, não deveriam sofrer regressão por conta de situações novas, menos ainda se essas forem de natureza tecnológica. O que, efetivamente, pretendo expor para a presente questão? É simples: o direito à privacidade como fonte geradora da mais eficiente apuração.
Bem sei que o tema, além de ser polêmico, exige certa coragem para o necessário enfrentamento de problemas que, na origem, são conflitantes. Com o intuito de acelerarmos a reflexão, proponho a seguinte situação: será lícito, em nome do ‘bem público’, a residência de um cidadão ser invadida e vasculhada por suspeita de algum ato delituoso? Se, quanto ao espaço real, a resposta for afirmativa, então, no tocante ao espaço virtual igual deverá ser. Todavia, se, em relação ao espaço real, a resposta for negativa, que fundamento ético justificará a invasão no espaço virtual?
Situação estranha
De início, há de se pensar que as novas tecnologias da comunicação criaram um embaraço entre o que é real e o que é virtual. No mundo anterior às tecnologias da informação, o real era o espaço no qual transitávamos e o virtual dizia respeito ao que imaginávamos. No mundo atual, porém, é tão real o que ‘virtualizamos’, mediante as ‘ferramentas’ tecnológicas, quanto o que vivenciamos na cena do cotidiano físico. Se não levarmos em conta essa mutação, colocaremos em sério risco todas as árduas conquistas para as quais dedicamos séculos de luta. O princípio é claro: a privacidade no espaço real é tão indevassável quanto aquela a ser preservada no espaço virtual. Para tanto, analisemos.
No espaço real, um cidadão qualquer tem a intenção de praticar um ato delituoso. Cabe à polícia, com seus mecanismos de inteligência, antecipar-se ou apresentar-se à cena do delito em tempo hábil, seja para impedir, seja para, adiante, prender o criminoso. Ora, no espaço virtual, o princípio há de ser o mesmo. O Orkut, por exemplo, é um amplo portal para qualquer rastreamento de qualquer policial que deseje encontrar ‘páginas indevidas’ (ou suspeitas). Então, que faça suas investigações pessoais. Não é preciso, para esse fim, quebrar a inviolabilidade do provedor.
Se qualquer cidadão pode ter acesso a páginas suspeitas sem a menor obstrução, por que a polícia não faz o mesmo sem ter de recorrer a delações impostas a provedores? Assim como a polícia faz ronda nas ruas, faça-a também na internet. Muito antes de a questão ocupar matérias na mídia, usuários do Orkut já haviam identificado páginas de pedofilia, mensagens pró-nazismo e outras aberrações. Como, portanto, entidades responsáveis pela segurança pública não rastrearam e, por conta própria, não iniciaram investigações? No mínimo, a situação é estranha. Aliás, segundo minha avaliação, é mais fácil a polícia, sem restrição na rede, identificar pessoas inclinadas a práticas criminosas do que a mesma polícia sair pelas ruas, a esmo, para tentar encontrar marginais.
Coibir, não, e sim, agir
Confesso que a defesa pelo controle (censura) de páginas ou publicações na rede, para mim, soa como algo revestido de dubiedade. Se eu fosse agente de segurança pública, preferiria a defesa pela total liberdade de expressão no espaço virtual. A certeza dessa preservação, na condição de policial, dar-me-ia amplo espectro de uma parcela populacional, disposta à promoção de atos ilegais, o que me propiciaria a decisão de providências inibidoras dos delitos. O que, portanto, me causa espanto é o silêncio da mídia quanto a essa questão. A quem, verdadeiramente, interessa obstruir em lugar de liberar?
Por outra: o que será mais difícil? Identificar, nos milhares de cidades das centenas de milhares de ruas, um potencial indivíduo, pronto para uma ação criminosa, ou, numa página do Orkut (ou site), encontrar uma rede de ‘deformados’, sedentos por tráfico de coisas horripilantes? Volto a enfatizar: eu, como agente da segurança pública, adoraria a máxima e livre exposição de tudo. Da liberdade de expressão, eu colheria itinerários, com informações seguras, que me levariam à identificação rápida de todos aqueles que estivessem predispostos a ações criminosas.
Sinceramente, não consigo compreender as razões logísticas (ou estratégicas) daqueles que erguem ‘bandeiras’ contra a liberdade propiciada pelas novas tecnologias da informação. Ou será, perversamente pensando, que as autoridades públicas não desejam, exatamente, a exposição dos delitos a fim de não serem cobradas pela sua inoperância? Não sei. É apenas uma tentativa de refletir sobre algo que abriga um conteúdo um tanto nebuloso. Espero que leitores atentos colaborem com o propósito da elucidação.
Em defesa da plena liberação, recordo que redes de criminosos foram interceptadas por conta da ausência de restrição. Quantas mais poderão ser identificadas ante as restrições que as conduzem, agora, à clandestinidade? Quem puder esclarecer que se apresente. Prometo ter a melhor acolhida a quaisquer réplicas bem fundamentadas. De resto, cabe compreender que a ação adequada não deve ser aquela que coíbe o potencial da nova ‘ferramenta tecnológica’, e sim, a atuação devida dos setores de inteligência contra indivíduos ou grupos de infratores.
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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)