É de Friedrich Nietzsche a advertência: quem combate monstros deve tomar cuidado para não se tornar, ele próprio, um monstro. É uma reflexão oportuna no instante em que a imprensa diária e semanal vem dedicando um considerável espaço continuado à discussão sobre o filme Tropa de Elite. Nunca um produto da cinematografia nacional suscitou tanto debate, e não apenas entre a crítica especializada, mas sobretudo junto à sociedade global, inclusive por parte daqueles que nem sequer ainda assistiram ao filme.
A pergunta estampada na capa da revista CartaCapital desta semana (7/14 de outubro) resume a questão: por que a maior parte do público vê como herói o ‘capitão Nascimento’? Este, só para rememorar, é o personagem vivido na tela pelo ator Wagner Moura. Trata-se da representação de um oficial do BOPE, unidade de elite da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que encarna, ideológica e praticamente, a divisa daquele grupo: rejeitar a corrupção policial e ‘deixar corpos no chão’ após suas incursões em favelas.
A discussão, do mesmo modo que uma análise freudiana, será provavelmente interminável junto à sociedade global, mas certamente terá um fim inconcluso por parte da mídia, uma vez que, como bem se sabe, as notícias ou os assuntos obedecem a um ciclo temporal com picos e quedas, na medida do desgaste da atenção que suscitam.
Formas de cidadania
Agora, entretanto, ainda no aceso da questão, é possível flagrar, num ensaio de análise de recepção, dois grupos de opiniões junto ao público. O primeiro corresponde à geração ‘cinquentona’, que vivenciou a ditadura militar e, convicta quanto à crença no universalismo dos direitos humanos, permanece atenta aos riscos de quebra dos padrões da democracia clássica. O segundo grupo corresponde aos jovens, pós-ditadura, educados pela nova democracia social, cujos valores têm basicamente a ver com o consumo.
Registram-se aí, na verdade, dois sentidos diversos de cidadania, que é um conceito-chave para a experiência democrática. Foi T.H. Marshall quem o generalizou, a partir do caso inglês, no início do século 20. Para ele, a cidadania tem como elementos constitutivos os direitos de primeira geração (civis e políticos), frutos dos séculos 18 e 19, e de segunda geração (sociais), conquistados no século 20. Os civis, preconizados pelo liberalismo clássico, correspondem aos direitos individuais de igualdade, propriedade, liberdade, expressão etc.; os políticos, direitos individuais exercidos coletivamente, referem-se à liberdade de associação e reunião, ao sufrágio universal, à organização política e sindical etc. Por sua vez, os direitos sociais dizem respeito à garantia de acesso ao bem-estar coletivo, traduzido em recursos como trabalho, educação, saúde, etc.
Estas várias formas de cidadania estão politicamente conectadas, e podem ser resumidas, a exemplo do cientista político Carlos Nelson Coutinho, como ‘a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos, de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado’.
Magnitude destrutiva
Ora, para os membros do segundo grupo a que aludimos acima (os mais jovens), cidadania de hoje se comprova no exercício pleno dos direitos sociais, dentre os quais se acha particularmente ameaçada a segurança individual, ou seja, a liberdade de ir e vir. Os mais pobres, nas favelas, estão submetidos à mais absurda das ditaduras, exercida por traficantes ou então por milicianos, que consiste na prática em imposição de toque de recolher e de formas particulares de conduta. Os mais abastados têm a sensação de que a cidade, repartida em zonas de perigo, lhes foi expropriada pelos bandos ilegalistas.
E não se trata de meras ‘sensações’. O pensador alemão Jurgen Habermas sustenta que ‘para tutelar a integridade dos sujeitos jurídicos, o sistema deve também equiparar e tutelar com rigor – sob o controle dos cidadãos – os contextos de vida que garantem a sua identidade’. Em outras palavras, quando o Estado perde o domínio prático dos territórios sobre os quais exerce formalmente a sua soberania, esboroam-se as ficções jurídicas que sustentam a sua autoridade, tornam-se letra morta os dispositivos da democracia liberal.
Isso acontece normalmente em situações de guerra. Enfatizamos o ‘normalmente’, porque, embora não haja situação bélica formalmente declarada nas megalópoles brasileiras (Rio de Janeiro e São Paulo são megalópoles, não mais velhas metrópoles), a situação real é de guerra, evidenciada na magnitude destrutiva das armas usadas, nas torturas, na impiedade de parte a parte. São estas as aparências encenadas pelo filme Tropa de Elite.
Suja e triste
‘Fascismo’ não é um termo esclarecedor do comportamento dos personagens, apesar de sabermos o quanto o perigo do totalitarismo ronda as exceções da lei. O que há mesmo é a realidade de uma guerra cotidiana não formalmente declarada e não suficientemente ponderada pelas elites pensantes. O alemão Hans Magnus Enzensberger sugeriu o conceito de ‘guerra civil molecular’ para esse tipo de conflagração, e talvez seja o caso de prestar mais atenção à idéia.
Nesse tipo de guerra, são socialmente responsáveis os administradores de cidades que respondem com um ‘ilegal, e daí?’ à desagregação territorial urbana; os que acham ‘inocente’ ou ‘descomprometido’ com a violência o consumo de drogas; os que assistem indiferentes à depredação dos equipamentos públicos; os dirigentes que subestimam ou subestimaram o problema da segurança individual. Partilham, queiram ou não, da monstruosidade do ‘capitão Nascimento’.
Em meio à falta de valores públicos, não é de se estranhar que o público jovem de Tropa de Elite possa acabar aplaudindo o ‘capitão Nascimento’ – uma encarnação da antidemocracia, certo, mas alguém ainda capaz de proclamar uma diferença entre o certo e errado, semiotizado como herói de guerra.
Um novo tipo de guerra – miúda, mas suja e triste – do cotidiano nacional.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro