Na terça-feira, (27/9), o ministro Cezar Peluso usou o website oficial do STF para publicar uma nota repudiando as críticas que tem sido feitas ao Poder Judiciário.
A nota é omissa. Portanto, o leitor é incapaz de saber exatamente quais são os jornais referidos pelo Presidente do CNJ/STF. Talvez seja o Estadão, que está em guerra com o Judiciário por causa de uma questiúnculaenvolvendo a família Sarney. Devemos incluir entre os jornais referidos por Peluso a CartaCapital, que fez uma crítica bastante contundenteao Judiciário recentemente.
A função principal do Judiciário não é divulgar notas de repúdio na imprensa ou contra a imprensa (como a que foi subscrita pelo ministro Cezar Peluso), mas julgar disputas judiciais submetidas àquele poder proporcionando às partes a correta aplicação das leis com garantia a todos os meios de provas e recursos admitidos pela legislação. Peluso, me parece, se desviou de seu mister. Como não cabe ao presidente do STF e do CNJ julgar em público a imprensa ou os jornalistas, o relacionamento entre o Poder Judiciário e a sociedade deve ser deixado aos especialistas em Relações Públicas contratados pelo STF (idem para os outros tribunais).
E, já que estamos falando do STF, nunca é demais lembrar que ele é o principal guardião da Constituição. Então, me parece que seu presidente deveria se preocupar com uma outra questão bastante mais importante que está sendo debatida esta semana. No Observatório da Imprensa há uma crítica indireta contundente ao funcionamento (ou melhor, ao não funcionamento) do Judiciário brasileiro. O texto é de autoria de Mauro Malin e toca numa ferida bastante exposta: a pena de morte que tem sido decidida e executada “oficialmente” e “extra-oficialmente” por policiais brasileiros.
“Resistência seguida de morte”
O texto é tão bem escrito que merece ser reproduzido:
“Com alguma frequência os meios de comunicação citam dados sobre a aplicação da pena de morte em países nos quais ela ainda não foi abolida. O balanço da Anistia Internacional para 2010 destaca, entre outros, a China (`milhares´ de execuções), o Iraque (279), o Irã (252), o Afeganistão (`pelo menos 100´) e os Estados Unidos (46).
“Repete-se nos jornais que a pena de morte foi aplicada pela última vez no Brasil em 1876, ainda no Império. Engano. Ela é aplicada diariamente. Só não passa por decisão judicial.
“No estado do Rio de Janeiro houve no ano passado 855 casos de `resistência seguida de morte´. Especialistas em segurança pública e jornalistas afirmam que se trata, muitas vezes, de execuções com tiros pelas costas ou na nuca, ou que deixam ferimentos nas mãos, indicando tentativa da vítima de se proteger de disparos.
“O Rio é citado aqui porque seus dados têm mais visibilidade do que os das demais unidades da federação. O fenômeno é nacional. Daí a importância atribuída em qualquer documento sobre direitos humanos às mortes assumidas por policiais.
“Num táxi tomado no aeroporto de Guarulhos algumas semanas atrás, perguntei ao motorista se os assaltos a viajantes que desembarcam do exterior em São Paulo continuam frequentes. Ele disse que agora está mais calmo. Perguntei se tinham prendido alguma quadrilha. Ele disse que não, que mataram. Perguntei quem matou. Ele respondeu que foi a PM. Argumentou que as quadrilhas são conhecidas, usam as mesmas motocicletas para assaltar. Não seguem mais os táxis a partir do aeroporto. Esperam-nos em bairros onde a maioria dos assaltos acontece: Jardins, Paraíso, Vila Mariana. São táxis registrados em Guarulhos, pintados de forma característica. Quando passa um desses em algum dos eixos principais de trânsito, é fácil segui-lo.
“Perguntei se não basta prendê-los, como está na lei. Argumentei que matar nunca resolveu nada. Respondeu que os assaltantes voltam logo à rua e recomeçam a agir. Então, os taxistas se cotizam e pagam para a PM matar. Os policiais fazem o serviço e declaram na delegacia que foi `resistência seguida de morte´, gerando um documento conhecido como `auto de resistência´.
“Sem dar muita importância ao assunto, o taxista, que não era um sujeito de maus-bofes, disse que matar era a única solução possível.
“Essa é uma entre dezenas de modalidades de aplicação da pena de morte no Brasil. Muito recentemente, ela foi decretada e executada contra a juíza Patrícia Acioli, de São Gonçalo (RJ).
“Convém lembrar que, segundo a crônica policial, o primeiro esquadrão da morte do país foi formado no então Distrito Federal por remanescentes da Polícia Especial do Estado Novo, sob o comando de um coronel do Exército, e costumava `desovar´ cadáveres no viaduto do Véu da Noiva, na rodovia Rio-Petrópolis. Vivia-se o período que antecedeu imediatamente os `anos dourados´, a primeira metade dos anos 1950.”
Execuções se tornaram a regra
Também já fiz comentários sobre este assunto neste Observatório (aquie aqui).
A questão levantada por Mauro Malin é muito grave e merece mais atenção do STF e do CNJ do que o conflito alimentado pela nota de repúdio de Cezar Peluso. A pena de morte é expressamente proibida na Constituição Federal e mesmo assim tem sido largamente decidida e aplicada por policiais “oficialmente, extra-oficialmente e sob encomenda”. Isto tem ocorrido com frequência e sob o silêncio e as vistas grossas de juízes, desembargadores e ministros do STJ e STF e conselheiros do CNJ. O fato é notório mas não provoca repulsa oficial dentro do Poder Judiciário.
Todos sabemos que não são apenas suspeitos e criminosos que têm sido friamente executados por policiais. No Rio de Janeiro, um cidadão usando sua furadeira foi morto a tiros de fuzil porque o policial do Bope “confundiu a furadeira com uma sub-metralhadora Uzi” (isto foi o que ele disse à imprensa). O silêncio e as vistas grossas do Judiciário sobre estas execuções policiais foi tamanho, que alguns policiais criminosos tiveram a “ousadia” de aplicar o mesmo tratamento a uma juíza carioca.
A resposta do Judiciário quando ocorreu a execução da juíza foi imediata e exemplar. Nos outros casos, entretanto, o mesmo Poder Judiciário tem sido extremamente tolerante em relação às execuções “oficiais, extra-oficiais e encomendadas”. Não sou especialista em segurança pública, mas tenho alguma perspicácia. Com todo respeito devido aos membros do Poder Judiciário, devo dizer que me parece que a tal juíza foi em grande medida executada indiretamente por seus próprios colegas. Afinal, foram os juízes, desembargadores e ministros do STJ e STF que, em razão de sua tolerância, definiram o padrão dominante de relação entre os policiais e a sociedade brasileira. Portanto, se as execuções policiais “oficiais, extra-oficiais e encomendadas” se tornaram a regra, não é preciso muita inteligência para perceber que, em algum momento, os próprios juízes passariam a ser julgados e executados por policiais.
Proibida pela Constituição
No caso da juíza ficou evidente que o Judiciário agiu movido pelo corporativismo. Ficou parecendo que os membros do Poder Judiciário quiseram dar um recado aos policiais encarregados de julgar e executar a pena de morte no atacado e no varejo. Algo como “…sejam mais cuidadosos e menos rigorosos, vocês podem até matar favelados, suspeitos, criminosos e desafetos, inclusive sob encomenda, mas por favor não matem juízes, não fica bem; eles são `mais iguais´, entendem?”
As garantias prescritas na Constituição Federal, ministro Cesar Peluso, são para todos os brasileiros e estrangeiros que residem no Brasil e não apenas para os cidadãos “mais iguais” que pertencem ao Poder Judiciário. Sendo assim, creio que ao invés de ler notas de repúdio à imprensa, a sociedade brasileira ficaria mais satisfeita em ver no website oficial do STF uma nota dizendo que o Tribunal e o CNJ estão estudando editar uma súmula vinculante (ou algo parecido) proibindo as execuções policiais “oficiais” (as extra-oficiais e encomendadas já são criminosas) e esclarecendo os agentes públicos de segurança pública que a pena de morte é expressamente proibida pela Constituição Federal e, o que é mais importante, não será tolerada pelos membros do Poder Judiciário.
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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]