Depois do massacre da redação do Charlie Hebdo, localizado no distrito 11, na Rue Nicolas Appert, centro de Paris, o jornal liberal de esquerda Libération ofereceu “exílio” para o que restou da redação do semanário. O próximo número está sendo preparado. A edição sairá na quarta-feira (14/1). O processo de criação está sendo documentado em vídeo pela equipe do Libé.
O quanto de superação não é preciso para reiniciar o trabalho sentindo a presença na ausência de colegas com quem se atravessou tantas vitórias e momentos de apreensão, de ameaças de morte? Como superar as imagens de terror e voltar a participar de uma “simples” reunião de redação?
Os vídeos mostram um clima ao mesmo tempo de tentativa de normalidade e de tristeza, mas sem dar o braço a torcer. Não é a primeira vez que o Libération oferece “asilo” ao semanário Charlie Hebdo. Em 2011, por ocasião da edição número 1011, com a provocante manchete “Charia Hebdo” ao invés do título “Charlie Hebdo” e nomeando o profeta Maomé com editor-chefe, o jornal sofreu um ataque seguido de um incêndio que destruiu por completo a redação (ver aqui).
Dessa vez, nos primeiros dias de 2015, foi um massacre. Os irmãos Kouachi executaram os redatores forma matemática. Chegaram durante a reunião de pauta dos redatores, chamaram um por um pelo nome, para terem a certeza do serviço completo, e mataram dez pessoas, deixando órfã a chefia da revista e os familiares. Mais que isso: todo um país.
O status que os artistas do lápis e do desenho gozam na França é incomparável. Os franceses crescem com eles, acompanham seu desenvolvimento e são até reconhecidos pelo governo com condecorações.
Vamos fazer o jornal – “Bon, on fait le journal?”
A matéria sobre a chegada dos integrantes da redação ao prédio do Libé mostra como a “simples tarefa” de pegar o lápis e desenhar se tornou um dever, uma obrigação, uma bandeira para a liberdade de expressão, para a de imprensa e para a democracia num contexto humanista (ver aqui e aqui).
A idéia de Gérard Biard, atual editor-chefe, é ter uma tiragem de 3 milhões de exemplares na quarta-feira (14) ao invés dos tradicionais 60 mil. “Não será uma edição obituária nem uma edição especial. O próximo número sairá representado por TODOS os membros da redação, todos, sem exceção. Quem já comprava o jornal, vai comprá-lo normalmente na quarta-feira (14). Claro que haverá pessoas o que irão comprar pela primeira vez e espero que elas o continuem comprando”, diz Gérard, esboçando um sorriso que revela um apelo. “Charlie Hedbo não morreu”, conclui (ver aqui).
O segundo dia de reunião da redação já esboça alguma normalidade. As imagens filmadas pela equipe do Libé causaram reações de surpresa nas redes sociais. Os integrantes do jornal aparecem fumando no local de trabalho e ratificam a filosofia do “joie de vivre”, alegria de viver (ver aqui).
Reunião de redação e perigo de vida
O caricaturista do Libération e eventual colaborador do Charlie conta em tom de choque como soube da notícia do massacre. Estava num trem entre Lorient e Paris e soube através de telefonemas pingados que anunciavam duas, três mortes. “Eu não acreditava.” Wilhem garante que nunca foi de comparecer à reunião de pauta e que vai manter essa prática. “Não ter ido, salvou a minha vida” (ver aqui).
Visita ilustre, sem delongas
Ainda na noite de quarta-feira (7/1), o ministro francês do Interior Bernard Cazeneuve fez uma visita de alto valor simbólico à redação do Libération e, logo em seguida, à redação do Le Figaro. Na primeira escala da visita, ele confessa o choque em que se encontrava além de ratificar a importância da liberdade de imprensa (ver aqui).
Logo depois da liberdade dos reféns do supermercado judeu em Portes de Vicennes, no sudoeste de Paris, e da gráfica em Dammartin-en-Goële (nordeste de Paris), onde se esconderam os irmãos Kouachi, o presidente francês François Hollande, em pronunciamento à imprensa, declarou: “Eles queriam nos colocar de joelhos, mas a França mostrou que se ergue e vai se erguer”.
O massacre ocorrido na redação de Charlie Hebdo não se resume ao jornalismo e ao exercício dessa profissão, que cada vez deve ser mais defendida, como mostra a notícia recente sobre o blogueiro Raif Badawi, cofundador do site Rede Liberal Saudita, que foi chicoteado durante 15 minutos em praça pública por ter “insultado o Islã”.
A série do terror que durou três dias até o assalto paralelo aos dois locais onde se encontravam os terroristas e os reféns é especialmente doloroso no país da Revolução Francesa, no país de Jacques Lange, de François Mitterand, mas também no país de Georges Wolinksi, Jean Cabut (Cabu), Stéphane Charbonnier (Charb) e Bernard Verlhac (Tignous).
Na marcha republicana do domingo (11/1), a França seguiu os apelos dos arqui-inimigos, François Holande e Nicolas Sarkozy, que deram exemplo apertando as mãos em frente ao palácio presidencial, o Elysée, algo que não acontecia desde que Sarkorzy teve que passar a faixa presidencial para o atual presidente. O massacre de Paris foi uma bem-vinda ocasião para Sarkozy, que não faz segredo sobre a preparação de sua “volta” desde que recentemente retomou sua posição como chefe do partido conservador gaulista, UmP. O massacre de Paris e a discussão sobre uma possível participação da dama de ferro francesa Marine Le Pen trouxe a ele o foco midiático desejado para vender seus argumentos de linha dura, argumentos esses que defende desde a época em que assumiu o cargo de ministro do Interior, em 2005.
Agora a França se vê politicamente num bazar turco. Sarkozy na área e Marine Le Pen, chefe do partido de extrema-direita Front National,correndo por fora. Sem perder tempo, logo dias depois do massacre aos redatores do Charlie Hebdo ela foi convidada pelo jornalista Roland Sicard da emissora de TV France 2 para o programa As 4 verdades. A ideia era desmascarar o jogo político pérfido do Front National, mas Madame Le Pen joga na Liga dos Campeões quando se trata de retórica apurada – e estava tão bem preparada que o tiro saiu pela culatra.
Na entrevista, vê-se um jornalista encolhendo cada vez mais, baixando cada vez mais a voz. Ele inicia com a pergunta: “Nicolas Sarkozy apelou pela unidade nacional. A Sra. vai fazer parte?
“A nação é unida na dor, mas unida também no sentimento profundo devido ao ataque feito à França. Fomos atacados na nossa liberdade, nos nossos valores, no nosso modo de vida. Foi declarada a guerra à França”, ela respondeu. Le Pen também não perde tempo em sugerir um plebiscito que decida sobre o retorno da pena de morte.
Aos poucos o jornalista vai perdendo espaço, sendo colocado contra a parede, e fica tolhido para questionar, interrogar e até mesmo interromper o discurso visivelmente ensaiado. No final do programa, por razões editoriais explícitas resultantes do avançado da hora, ele pergunta se ela vai participar da manifestação republicana que aconteceu no domingo (11).
Nem mesmo o gancho envolvendo o Charlie Hebdo quando ele instiga: “Charlie não era a sua revista preferida. A Sra. foi caracterizada por ela muitas vezes”. Com charme e esboçando um sorriso igualmente simpático e matematicamente ensaiado, ela retruca: “Charlie nos caracterizou e criticou muito, mas a democracia é precisamente isso mesmo”.
Nicolas Sarkozy e Marine Le Pen não terão escrúpulos em tentar tirar proveito político do massacre de Paris. François Hollande sai politicamente enfraquecido de toda essa tragédia. As falhas do serviço secreto e da polícia se foram cada dia mais transparentes com as matérias e os questionamentos que estão sendo feitos desde a manhã de sábado (10/1). Uma das mais gritantes é que os irmãos Kouachi já constavam, há tempos, da lista negra – “Fly list” – dos EUA, lista essa que proíbe a entrada e saída do país.
Na segunda-feira (12/1) foram divulgadas na imprensa imagens da cúmplice de Amedy Coulibaly, o assassino do supermercado judaico, embarcando no dia 8/1 da Turquia para a Síria. Membros do serviço secreto turco declaram frente às câmeras de TV que “não houve nenhum contato, nenhuma pergunta do governo ou do serviço secreto francês” e, por isso, não havia razão jurídica para impedir o embarque.
Europa está em guerra
Na Rússia. Na Ucrânia. Na França. Já pegando a rebarba do massacre de Paris, o jornal Hamburger Morgenpost, popularmente chamado de Mopo, foi atacado na noite de domingo (11) provavelmente por ter impresso as caricaturas de Charlie no dia seguinte ao massacre em Paris.
Todas às segundas-feiras, as ruas das maiores cidades da Alemanha são tomadas por autobatizados “Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente”, abreviado Pegida. Esse movimento tem causado muito medo na Alemanha. O país está divido.
O que isso tem a ver com Paris?
O fato de islamistas fanáticos e extremistas terem executado o massacre de Paris é adubo bem-vindo por todas as tendências de direita e extrema-direita na Europa. A consequência mais inusitada resultante do temor que acomete a Alemanha nos últimos meses é que Angela Merkel vem tomando posicionamento claro, algo excepcional em seu estilo de governo.
Na segunda-feira (12), recém-chegada da marcha republicana de Paris, ela pegou carona na frase polêmica dita pelo ex-presidente Christian Wulff e, contrariando todas as possibilidades, mandou curto e grosso: “O Islã faz parte da Alemanha”.
A Europa está em convulsão. De valores. De premissas. À procura de uma identidade.
******
Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988; autora do blog “Todos os caminhos levam a Berlim”, no Estadão.com