NOTÍCIA & FACTÓIDE
Queremos rosetar, 20/3
‘Fico pasmo com a quantidade de notícias boas na área econômica veiculadas pelo meu canal de TV a cabo.
Monstros sagrados que vêm atormentando a paz nacional desde minha juventude, como a dívida externa, acabam de ser declarados mortos. Incrível.
Os comentaristas registram o inusitado das nossas reservas – na casa dos 200 bilhões, eram apenas 14 bilhões em 2003 -, a integração de 20 milhões de pessoas ao mercado de consumo, a descoberta de reservas enormes de petróleo, o melhor nível de emprego formal…
Diante de tantas notícias boas, e no meio de uma crise internacional, vou ficando encabulado com a aparente neutralidade e falta de entusiasmo com que tais notícias parecem estar sendo recebidas.
Será que estamos diante de falsas conquistas, factóides governistas que escondem demandas e descalabros de várias ordens, ou perdemos a capacidade e quiçá a sensibilidade para reconhecer avanços e conquistas
Ou será que temos aí uma repetição do fenômeno que apontou o divórcio entre a ‘opinião pública’ tal como refletida na mídia, e a ‘opinião pública’ real, tal como refletida nas urnas por ocasião da reeleição de Lula? Se tal for o caso, é uma situação grave de constipação midiática – canais entupidos?
Mas por que essa aparente incapacidade de reconhecer e de celebrar conquistas seria preocupante?
Olho para os espaços de liberdade e de desenvolvimento espremidos entre as ditaduras brasileiras no século XX e tremo nas bases.
Eu tinha seis anos quando a construção de Brasília invadiu o imaginário do país e a imagem simpática de um presidente desenvolvimentista acenando para seu povo foi cunhada em nossas mentes.
Todavia, os anos seguintes imprimiram retrospectivamente sobre aquele período um certo amargor, uma certa culpa pela incapacidade de defendê-lo e de preservá-lo.
Afinal, um estado de liberdade que não consegue se preservar pode mesmo ser chamado de estado de liberdade? Uma sociedade indefesa com relação a seus vetores perversos é uma sociedade saudável? Então não poderíamos ter enxergado ali na frente todo o obscurantismo que se seguiria? Não estava patente em tantas coisas?
É claro que a análise histórica com um mínimo de profundidade apontaria, e apontou, todos os conflitos latentes e suas vicissitudes.
Por que a sociedade seguiu imune a tais avisos? Por que foi incapaz de proteger suas conquistas, e acabou afundando naqueles vinte e tantos anos de autoritarismo que tanto contribuíram para o agravamento da condição de vida de nosso povo?
O reconhecimento de avanços e conquistas é parte imprescindível do processo de defesa desses resultados positivos, e está intimamente ligado à capacidade de visão crítica da sociedade, ou pelo menos, da projeção dessa visão crítica pela mídia – reconhecer avanços não significa ser passivo.
Bem ao contrário, a visão crítica dos problemas e obstáculos depende e muito do diagnóstico ponderado dos avanços, ambos integram o sistema imunológico da sociedade.
A incapacidade de discernir entre notícias realmente boas e factóides aponta para um jogo político confuso, e para uma agenda projetada na mídia que não consegue estabelecer distinções entre o essencial e o circunstancial.
Esse me parece um perigo concreto. Um efeito bastante perverso do embate narrativo entre grupos políticos que tiveram origem comum no movimento de resistência à ditadura, e que hoje ‘animam’ a cena política através de alianças com grupos e narrativas que tiveram outras origens, muitas vezes desvinculados de qualquer visão progressista.
Por que em nossa trajetória tem sido impossível reunir as esquerdas como um todo? – aqui entendidas como propensão a uma visão transformadora da sociedade com distribuição de renda significativa -, ao invés desse engalfinhamento instável que favorece uma pauta política turva e circunstancial?
Sei que é uma pergunta cândida, mas elas também são necessárias.
Nós, simples leitores-eleitores dessa cena política, queremos um debate desteatralizado sobre os desafios e avanços possíveis para nossa geração. Sobre ações e metodologias eficazes.
Não queremos mais embarcar em sensacionalismos de folhetim latino americanos, em falsas bandeiras e marajás, ou seja, em pautas que apelem para a desinformação e despreparo do grande público.
Depois de tantos anos dedicados ao autoritarismo no século XX, queremos garantir nossa liberdade e nossas conquistas, com visão crítica e capacidade de celebração. Queremos entender e queremos rosetar, o resto é detalhe.’
******************
Clique nos links abaixo para acessar os textos do final de semana selecionados para a seção Entre Aspas.