Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Timidez ao abordar a comunicação

O Estatuto da Igualdade Racial (EIR) sancionado pelo presidente da República no último dia 21 de julho reservou um capítulo específico para comunicação. Porém, como todo documento, os pontos aprovados são considerados insuficientes para reverter a disparidades raciais no país. No caso das políticas de comunicação, o caráter tímido do Estatuto correspondeu a ofensiva dos grandes empresários do setor ao projeto do senador Paulo Paim (PT-RS). 


Foram abandonadas proposições de cunho reparatório no mercado de trabalho, propriedade da radiodifusão e na transformação em direito o acesso à banda larga e os demais serviços das telecomunicações. A redação do Estatuto é orientada pela noção gênerica de ‘igualdade de oportunidades’ e enfatiza a participação da população negra em peças publicitárias, filmes e programas veiculados pelas emissoras de televisão. Porém foi retirado que esta participação seguiria para uma proporção mínima de 20%.


Tal direcionamento do EIR fica aquém das resoluções aprovadas na 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e na 2ª Conferência Nacional pela Igualdade Racial (Conapir). As duas conferências apontam o acesso a propriedade da radiodifusão para comunidades quilombolas e fiscalização de práticas discriminatórias nos meios de comunicação.


Seppir excluída


As críticas ou invisibilidade dos veículos de comunicação tradicionais ao Estatuto foram centradas nas ações afirmativas para estudantes das universidades públicas. As ações, que têm como eixo principal e polêmico a adoção das cotas, sintetizam debates históricos dos movimentos negros que não foram aprovados pelo EIR e também pela Confecom. 


Juliana Nunes, integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira) do Distrito Federal, avalia que as resoluções da Confecom podem nortear a efetivação dos direitos e políticas públicas previstas no Estatuto, que para ela é ‘um instrumento com embasamento legal mais consistente que o caderno final da Confecom’. Juliana espera que a recém-criada Comissão Interministerial de Revisão do Marco Regulatório da Comunicação crie rapidamente o Conselho Nacional de Comunicação, com assento para a população negra e outros grupos sociais, e estabeleça novos critérios para renovação das concessões públicas, levando em conta de forma mais efetiva as questões de gênero e étnico-raciais, demandas aprovadas na Confecom. 


Por enquanto, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) está de fora da comissão responsável pelo marco regulatório. Além disso, o Estatuto desconsiderou resoluções da 2ª Conapir como a fiscalização e punição à intolerância religiosa, contratação de funcionários negros em empresas financiadas com dinheiro público de forma integral e concessões de radiodifusão para comunidades tradicionais.


O que foi aprovado


Os quatro artigos do capítulo de comunicação do Estatuto da Igualdade Racial são tão curtos que fazem lembrar a Lei Áurea, atestada como umas das Leis mais curtas da história do país, com apenas dois artigos [‘Art. 1.º: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art. 2.º: Revogam-se as disposições em contrário.’] O artigo inicial do Estatuto indica que os órgãos de comunicação devem valorizar a herança cultural e participação negra na história do país. Sem qualquer recomendação específica para sua aplicação. 


Os três artigos seguintes do Estatuto enfatizam que as peças publicitárias, filmes e programas vinculados na televisão ou com auxílio estatal devem incorporar atores e profissionais na equipe de produção. Juliana Nunes ressalta que a retirada do percentual mínimo de 20% diminui a efetividade das ações afirmativas: ‘Essa supressão ocorreu na Câmara dos Deputados e foi resultado de um lobby intenso das empresas de comunicação, feito de maneira pouco transparente e democrática’.


Confecom


Na Confecom, o Grupo de Trabalho (GT) 15 ficou escondido no imenso Auditório Ulysses Guimrães e abarcou as proposições étnico-raciais em conjunto com segmentos como criança e adolescente, gênero e gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (GLBTT). Devido o grande número de propostas a serem analisadas pelo GT, os empresários miraram em sete propostas, nas quais a cotas eram citadas. O acordo foi direto: retirar as menções as cotas raciais.


Sem outra alternativa, as organizações presentes fizeram o acordo, em especial os representantes de articulação ‘Enegrecer a Confecom’, que reuniu cerca de 30 entidades, coletivos, redes, associações do movimento social negro, de mulheres negras, rádios comunitárias, comissões de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojiras) e Núcleo de Jornalistas Afrodescendentes. Juliana Nunes, uma das integrantes da Enegrecer, lembra que apesar das perdas foram aprovadas propostas importantes, que atrelam o conceito de igualdade de oportunidade e ação afirmativa à representação negra na mídia de acordo com a proporção de pretos e pardos na população brasileira, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).


A representante das Cojiras endossa que a conferência deliberou pela realização de um censo étnico-racial, de gênero e orientação sexual nas empresas de comunicação e telecomunicação. Juliana narra fato recente do Sindicato dos Jornalistas do DF, no qual negociou acordo coletivo com empresas para realizar o censo, mas os veículos se recusaram – entre os quais a Rede Bandeirantes, presente à Confecom. ‘Essa reação, pós-Confecom, revela a dificuldade que será implementar o capítulo de comunicação do Estatuto e as ações afirmativas na mídia’, diz Juliana. Ela defende que, para o termo não ficar apenas no papel, serão necessários estudos e monitoramento constantes, além de um articulação permanente do movimento social negro, Ministério Público do Trabalho, associações e sindicatos.


Enfrentamento


Para enfrentar os grandes veículos, surgiram iniciativas como a campanha ‘Afirme-se’, organizada pelo Núcleo Omi-Dùdú. A campanha arrecadou doações para publicar nos principais jornais do país uma propaganda a favor da constitucionalidade das cotas, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em março de 2010. Porém o jornal carioca O Globo pediu valor muito superior a tabela para o anúncio, saltando de R$ 54 mil para R$ 712 mil.


O coordenador do Núcleo, Bartolomeu Dias da Cruz, explica que a atitude de O Globo ficou caracterizada como abuso do direito comercial e censura. Organizações sociais do Rio de Janeiro impetraram reclamação contra o jornal via Ministério Público, porém o processo se fragilizou. ‘Os veículos de comunicação têm atitudes modernas e práticas antigas, eles são mantidos por grupos conservadores. A possibilidade de misturar concretamente a sociedade brasileira em todos os segmentos agride o conceito dessas pessoas’, ressalta Bartolomeu.


Atualmente o Omi-DùDú desenvolve projeto ‘Faces do Brasil’, no qual realizará monitoramento da cobertura sobre as políticas de reparação dos principais jornais impressos do país. O projeto é coordenado pelo professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia Fernando Conceição, e segundo Bartolomeu visa diagnosticar situações como o Estatuto: ‘Foi ignorado na imprensa. A morte do filho de Cissa Guimarães teve mais repercussão.’


O que estava em jogo


Iniciativas como da campanha ‘Afirme-se’ buscam defender que as cotas, enquanto política reparatória, subvertem a atual lógica meritocrática e confirmam o racismo institucional nos critérios de seleção e promoção dos órgãos públicos, situação essa que pode repercutir na destinação de verbas, licitações e concessões pelo Estado. Ou seja, os debates em torno do Estatuto não se resumiam a participação das minorias historicamente discriminadas no ensino superior ou no mercado de trabalho, mas os critérios utilizados pelo Estado em decisões estratégicas. 


A maioria dos grandes empresários de comunicação fez o papel de preservar seus interesses indiretamente na cobertura contra as cotas. Não somente porque os próximos Willian Bonner podem ficar de fora das melhores universidades do país, como a Universidade de São Paulo (USP), no qual o apresentador do Jornal Nacional se graduou. Mas também pelo fato dos herdeiros oligárquicos terem de disputar com os quilombolas rurais e urbanos espaço no espectro radiofônico e também nas volumosas verbas de publicidade dos três entes da federação.


Já nas telecomunicações, o reconhecimento do acesso a infraestrutura para segmentos da sociedade nos quais o retorno financeiro às empresas é reduzido, nulo ou deficitário abre maiores brechas para o setor ser incorporado aos direitos sociais e econômicos – e não como mera mercadoria – da sociedade. 


Recursos oriundos do Fundo de Universalização das Telecomunicações (Fust), por exemplo, poderiam ser deslocados para grupos criminalizados, conforme aponta a resolução da Confecom: ‘Garantia de recursos de recorte racial no Fust para a realização de projetos na área de tecnologia da informação e comunicação para a juventude negra’. Atualmente o Fust só pode ser direcionado para telefonia fixa, porém as empresas que monopolizam o serviço nos estados já deveriam, por força do contrato, cobrir toda população. 


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Capítulo da Comunicação no Estatuto da Igualdade Racial


CAPÍTULO VI – DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO


Art. 43. A produção veiculada pelos órgãos de comunicação valorizará a herança cultural e a participação da população negra na história do País.


Art. 44. Na produção de filmes e programas destinados à veiculação pelas emissoras de televisão e em salas cinematográficas, deverá ser adotada a prática de conferir oportunidades de emprego para atores, figurantes e técnicos negros, sendo vedada toda e qualquer discriminação de natureza política, ideológica, étnica ou artística.


Parágrafo único. A exigência disposta no caput não se aplica aos filmes e programas que abordem especificidades de grupos étnicos determinados.


Art. 45. Aplica-se à produção de peças publicitárias destinadas à veiculação pelas emissoras de televisão e em salas cinematográficas o disposto no art. 44. 


Art. 46. Os órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica ou fundacional, as empresas públicas e as sociedades de economia mista federais deverão incluir cláusulas de participação de artistas negros nos contratos de realização de filmes, programas ou quaisquer outras peças de caráter publicitário.


§ 1º Os órgãos e entidades de que trata este artigo incluirão, nas especificações para contratação de serviços de consultoria, conceituação, produção e realização de filmes, programas ou peças publicitárias, a obrigatoriedade da prática de iguais oportunidades de emprego para as pessoas relacionadas com o projeto ou serviço contratado.


§ 2º Entende-se por prática de iguais oportunidades de emprego o conjunto de medidas sistemáticas executadas com a finalidade de garantir a diversidade étnica, de sexo e de idade na equipe vinculada ao projeto ou serviço contratado.


§ 3º A autoridade contratante poderá, se considerar necessário para garantir a prática de iguais oportunidades de emprego, requerer auditoria por órgão do poder público federal.


§ 4º A exigência disposta no caput não se aplica às produções publicitárias quando abordarem especificidades de grupos étnicos determinados.