Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tiririca, palhaçada e preconceito

A eleição do palhaço Tiririca (Francisco Everardo Oliveira Silva) em 2010 como deputado federal por São Paulo, com mais de um milhão e 300 mil votos (a segunda maior votação da história daquela Casa), gerou ‘constatações’ como a de que ‘estamos perdidos’ e a de que o ‘parlamento chegou ao fundo do poço’. Ou ainda a de que, com um palhaço profissional eleito, estaríamos todos, como palhaços (no seu sentido mais pejorativo e não profissional), bem representados e de que Tiririca está exatamente onde deveria estar: no Parlamento brasileiro, ou mais especificamente, na Câmara dos Deputados, em Brasília.


Mais tarde, já agora em fevereiro, com a indicação de Tiririca para integrar a Comissão de Educação e Cultura da Câmara, a perplexidade e as novas ‘constatações’ reapareceram, tentando mostrar que ou era um ‘absurdo’ o eleito estar ali – já que analfabeto ou semi-analfabeto -, ou que era, também, exatamente o lugar mais adequado a ele, uma vez que era a ‘cara’ da educação e da cultura brasileiras.


Tem de tudo


Seguem alguns comentários. Existem parlamentares de altíssimo nível cultural, mas movidos por aspectos meramente ideológicos ou pessoais, que atendem ao próprio bolso particular. Eles formularam, votaram ou aprovaram projetos com danos à população em geral. Cultura – ou ‘alta cultura’ – não é sinônimo de qualidade e de benefício social. A este aspecto, grande parte da mídia parece dar pouco caso. Deveria prestar mais atenção e dar mais destaque a isso.


Há, também, muitos parlamentares de excelente qualificação e que formulam e têm projetos aprovados e que trazem benefícios sociais a milhões de brasileiros. Parte da mídia, ao reforçar estereótipos de que o nível dos parlamentares é muito baixo, de que não trabalham, de que os políticos são todos corruptos, de que o povo vota em qualquer um, esquece-se, propositalmente ou por incompetência, outros aspectos que mereceriam maior esclarecimento: o de que vários parlamentares trabalham muito e estão efetivamente interessados em melhorar o país; o de que também trabalham exaustivamente… embora não todos os eleitos; o de que o que aparece como visibilidade é apenas o plenário e não os incontáveis trabalhos e reuniões realizados nas comissões, que entram noite adentro; e de que, como resultado, saem também inúmeros projetos que beneficiam grandes grupos sociais ou a sociedade em geral.


Este duplo e diferente peso – maximizar os defeitos do Parlamento e da Política e minimizar os efeitos do trabalho dos eleitos – reduz a capacidade de entendimento da vida pública brasileira; dilui a ideia de representatividade; e empobrece – além de contribuir para a descrença – os valores da democracia e o ideal de participação pública. Os resultados contribuem para o que ocorre nas ruas: opiniões considerando que eleição é uma ‘bobagem’; justiça com as próprias mãos; preconceito que gera constantes violências… e o ‘vale-tudo’ e a idéia de que o voto nada vale ou que se pode votar em qualquer um que tanto faz…


Cobertura capenga


O papel de esclarecimento sobre o funcionamento do Parlamento e o destaque a parlamentares cultos que desenvolvem maus projetos e de parlamentares menos cultos ou mais ‘burros’ que apoiam bons projetos poderia ajudar a democracia e a idéia de representação – tão desacreditada –, e cuja responsabilidade não cabe apenas ao desempenho de deputados e senadores, mas também a determinadas coberturas capengas, ausentes ou mal intencionadas.


É preciso, a meu ver, algumas outras observações: 1) se as pessoas elegeram Tiririca, por deboche ou por convicção, é preciso que haja respeito à decisão, desde que os trâmites regulamentares tenham sido observados; 2) se o ‘Povo’ votou no bordão ‘vote em Tiririca, pior do que tá não fica’, tal imagem do parlamento e da política pode ser à imagem e semelhança deles, mas também à imagem e semelhança não apenas de Tiririca, mas do próprio povo e da mídia que não esclareceu suficientemente e contribui para estereótipos e preconceitos; 2) o fato de Tiririca, como palhaço, ser eleito com tal bordão, não esconde o fato de que renomados parlamentares, com currículos altamente qualificados, tomaram atitudes e defenderam projetos que submeteram a população e o país, em tempos próximos, à ditadura, à alta inflação, ao desemprego, à exclusão social; 3) Tiririca, diante de sua trajetória, está onde poderia estar, na Educação e Cultura, já que foi eleito e precisa ingressar em comissões. E, especificamente, na subcomissão que trata de Cultura. Em qual outra ele estaria mais adequado? À de Tributação e Finanças? À de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural? À de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio? À de Tecnologia e Informática?


O desempenho de Tiririca, como o de muitos outros, vai depender menos de sua condição cultural e de escolaridade e mais das intenções, do acompanhamento ideológico e político que fará a outros parlamentares, de alianças partidárias e das regras do Parlamento. Vamos ver para que lado penderá a balança. Pode ser que seja um desastre, pode ser que surpreenda.


Eleição de ídolos


Como os meios de comunicação massivos são a principal fonte de informação e aproveitamento de conteúdos culturais, é natural que a exposição de pessoas midiáticas, até chegar às celebridades, gerem curiosidade e interesse em torno de suas vidas. E, nisso, mais uma vez a mídia contribui para que os ‘conhecidos’ levem vantagem na visibilidade pública, tal como ocorre, contemporaneamente, com a eleição de ídolos, levados a tal condição, além das possíveis qualidades profissionais e pela embalagem destas, também pela ‘aura’ que está ao redor de tais pessoas, como é o caso de Romário e Tiririca, entre tantos outros. Isto não explica tudo, mas acho que explica bastante. E eles devem estar exatamente nas comissões onde podem, por conhecimento ou experiência pessoal, contribuir de alguma forma, já que eleitos.


Assim, deve-se, a meu ver, ter menos preconceito e destacar negativamente parlamentares que, com alto grau de conhecimento, geram projetos que danificam o bem público comum; e destacar positivamente aqueles que, com baixa escolaridade, podem, eventual ou costumeiramente, contribuir com projetos que beneficiem o bem público comum. Cabe à mídia esclarecer, não só informar: escolher não apenas o pior para os relatos e comentários mas também informar sobre o melhor para a maioria. E acompanhar, de dentro das comissões e do parlamento em geral, o desdobramento das ações, projetos e seus significados, contextualizando-os, no sentido de desmanchar equívocos, informar de forma correta e controversa – como é sua função – e defender a essência do Parlamento. Ao defendê-la, defende-se a liberdade e a democracia, ou seja, defende-se a opção de voto. Quanto ao voto consciente, também cabe a ela ajudar a esclarecer para que o voto seja de convicção e não de circunstância… ou moda ou anti-voto… Há uma parcela grande de responsabilidade midiática na eleição de Tiririca. Mas há parcela de responsabilidade ainda maior na condenação de antemão, sem acompanhar a essência do trabalho parlamentar, seus danos e benefícios e quem, realmente, são os responsáveis por estes, com alta ou baixa cultura.

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Professor da UFSC e Pesquisador do objETHOS