A desastrada operação de agentes da repressão ao tráfico, na região conhecida como “cracolândia”, no centro de São Paulo, produz na imprensa uma série de especulações interessantes. Uma delas diz que parte da polícia civil estaria interessada em boicotar o programa humanitário ensaiado pela Prefeitura, com a colaboração do governo do Estado, por disputas de poder no setor de segurança pública. Outra versão indica que, tanto no PT quanto no PSDB, há grupos políticos contrários à convivência pacífica entre o governador e o prefeito. Uma terceira alternativa considera que foi apenas uma trapalhada.
O episódio coloca em pauta, mais uma vez, a controvérsia entre defensores das duas abordagens básicas para problemas sociais como a epidemia do crack.
A Operação Braços Abertos, pactuada entre o Estado e a Prefeitura, tenta corrigir os problemas agravados pela estratégia colocada em prática na chamada Operação Sufoco, realizada em janeiro de 2012, quando a Polícia Militar cercou a “cracolândia”, prendeu indiscriminadamente traficantes e usuários e dispersou as aglomerações que se formavam nas ruas do centro da cidade.
O resultado foi desastroso: surgiram dezenas de outras “cracolândias”, os usuários foram aos poucos voltando a ocupar o gueto original, e a população dos viciados quase duplicou, aumentada por aqueles que aderiram à droga nos novos pontos de distribuição.
A nova estratégia tenta, há seis meses, obter a adesão dos usuários de crack a um projeto comunitário no qual eles recebem uma ajuda financeira e hospedagem gratuita em hotéis, em troca de trabalho como varredores de rua e atividades destinadas a facilitar a aceitação dos agentes públicos e conter a deterioração da região.
Os bons resultados conseguidos nos primeiros dias da operação parecem ter desatado a fúria dos titãs do reacionarismo, a se julgar pelos textos raivosos publicados por conhecidos defensores da “higienização social”.
O problema é que, ao atacar o prefeito petista, esses colunistas acabam por atingir o governador tucano.
Debate conturbado
Esse é outro aspecto a ser observado no noticiário. O governador Geraldo Alckmin, apontado pelas pesquisas como o provável vencedor da próxima eleição em São Paulo, tem que combater em múltiplas frentes para preservar sua vantagem inicial.
Para não arrastar, durante a campanha eleitoral, o peso de problemas como a “cracolândia”, enchentes, índices de criminalidade e a crise permanente nos transportes públicos, ele precisa da colaboração da Prefeitura e do apoio do governo federal. Como pano de fundo, pesa sobre sua imagem o caso das propinas em obras e serviços do sistema de transporte metropolitano sobre trilhos.
Na edição de sexta-feira (24/1), a Folha de S. Paulo surpreendeu ao afirmar explicitamente, em editorial, a convicção de que o governo de São Paulo tenha mantido uma “relação promíscua” com a Alstom, multinacional francesa envolvida em dois diferentes escândalos. “São, afinal, dois casos conhecidos envolvendo essa companhia francesa e o PSDB, que está no comando do Estado desde 1995”, diz o texto.
O episódio da quinta-feira (23/1) na “cracolândia” tem todos os indícios de ter sido apenas uma trapalhada: a delegada Elaine Biasoli, diretora do Departamento de Narcóticos e responsável formal pela operação repressiva, tem excelente reputação no sistema da segurança pública e foi nomeada justamente para reorganizar a delegacia especializada, recentemente flagrada em relação promíscua com traficantes.
Ainda que a ação tenha desandado simplesmente por erro de planejamento, suas consequências, no noticiário, remetem à velha questão sobre como tratar problemas sociais. Essa questão se agrava em todo o mundo desde a crise financeira de 2008.
Uma pesquisa feita pelo Pew Research Center, com apoio do jornal USA Today (ver aqui, em inglês), mostra que os americanos veem um aumento na diferença entre ricos e pobres naquele país, e a maioria deles, democratas e republicanos, concorda que o governo deveria atuar em defesa dos menos favorecidos.
Mas lá, como cá, as opiniões sobre a ação do Estado variam conforme a orientação ideológica: democratas defendem um comprometimento total do governo com os pobres e a taxação dos mais ricos e das corporações, enquanto os republicanos, mais conservadores, condenam os programas de intervenção direta contra a pobreza.
Esses perfis certamente se repetem no Brasil, mas o debate é obscurecido pelo radicalismo das opiniões que dividem o campo político, tanto na mídia tradicional quanto nas redes sociais digitais.