A festa realizada pelas emissoras de televisão em dezembro para marcar a entrada em funcionamento da TV digital no Brasil não significou, de perto ou de longe, que o processo de digitalização da radiodifusão esteja completo. São diversas as decisões adiadas pelo governo em prol da manutenção do calendário de transição inventado pelo Ministério das Comunicações ao escolher o padrão japonês (ISDB) como plataforma tecnológica para a TV digital brasileira. Uma delas, e talvez a mais significativa, é a definição de regras para o uso de mecanismos de controle anticópia, como são chamados no Brasil os sistemas DRM – Digital Rights Management.
Nesta entrevista concedida ao Observatório do Direito à Comunicação, Pedro Mizukami, pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-RJ, explica que as funções dos DRM nos sistemas de TV digital podem ir muito além de impedir a cópia dos conteúdos. Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP, Mizukami diz que a liberação do uso destes sistemas nos aparelhos receptores pode significar uma mudança profunda na lógica da TV brasileira, inclusive no seu caráter de recepção livre e aberta, como prevê a Constituição.
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A inclusão de mecanismos anticópia nos conversores e aparelhos de TV digital é uma polêmica que vem se arrastando desde os primeiros debates sobre a escolha da tecnologia a ser implantada no Brasil. Agora, o governo dá sinais de que cederá às pressões do empresariado e permitirá a instalação de sistemas de DRM (Digital Rights Management) nos aparelhos de alta-definição. Do ponto de vista legal, quais as implicações de uma decisão como esta?
Pedro Mizukami – Uma decisão do Executivo obrigando a adoção de sistemas de DRM na TV digital seria ilegal e inconstitucional. A questão é bastante complexa e deve ser analisada sob ângulos diversos, muito além do discurso usual que dá ênfase exclusiva à proteção aos direitos autorais. Há uma multiplicidade de interesses, direitos e deveres em jogo, veiculados por uma pluralidade de normas constitucionais e legais, que precisam, necessariamente, ser levados em consideração. É preciso pensar nos danos diretos e colaterais que sistemas como o proposto poderiam causar, implicando sérias ofensas à livre iniciativa, defesa da concorrência, autonomia tecnológica, possibilidades de inovação e direitos do consumidor, sem falar em violações a usos permitidos de conteúdo protegido por normas de direito de autor que independem de qualquer autorização dos titulares (limitações e exceções aos direitos autorais, particularmente as dispostas no art. 46 da Lei de Direitos Autorais). Além disso, sistemas de DRM contrariam diretamente o perfil de liberdade e abertura que o SBTVD deve ter por mandamento constitucional. O art. 155, X, ‘d’ da Constituição se refere aos serviços de radiodifusão sonora de e de imagem como de recepção ‘livre e aberta’. E a própria legislação da TVD garante que nada muda com a digitalização. O art. 4º do Decreto n.º 5.820/06 (referente aos limites de atuação do Comitê de Desenvolvimento do Sistema Brasileiro de Televisão Digital) diz: ‘O acesso ao SBTVD-T será assegurado ao público em geral, de forma livre e gratuita, a fim de garantir o adequado cumprimento das condições de exploração objeto das outorgas’.
E a ausência de qualquer definição do Executivo, deixando em aberto a possibilidade de instalação?
P.M. – A implementação desses sistemas por radiodifusores e fabricantes de hardware – ainda que ausente decisão do Executivo neste sentido –, seria igualmente questionável sob um ponto de vista jurídico. Mas há outro problema jurídico e político tão grave quanto as possíveis conseqüências da adoção de um sistema de DRM no SBTVD que precisa ser ressaltado: a total falta de transparência que tem marcado os debates em torno da questão. Decisões têm sido tomadas atrás de portas fechadas, e as informações que chegam até o público são escassas e, pelo menos em um caso, contraditórias. Vide as recentes manchetes diametralmente opostas publicadas nos jornais Folha de S.Paulo e O Globo.
E em que medida esta é uma questão legal?
P.M. – Falta de transparência em um processo tão importante, envolvendo concessão para a exploração de um serviço crucial como o de radiodifusão, não é algo compatível com o modelo de Estado Democrático de Direito adotado pelo Brasil, e tampouco respeita o princípio da publicidade ao qual se encontra submetida a Administração Pública (art. 37, caput, da Constituição).
A justificativa apresentada pelos empresários – que vão dos concessionários de TV aos grandes estúdios de Hollywood – é a pirataria…
P.M. – O termo ‘pirataria’ é extremamente questionável, em razão de sua maleabilidade. Quem é, afinal, ‘pirata’? Quem grava um programa na TV para assisti-lo depois? Quem instala uma cópia do Windows Vista em seu computador sem observar o que dispõe o licenciamento do programa? Quem vende uma cópia do mesmo programa? Quem faz uma performance musical em praça pública, a título gratuito, sem pagar os direitos referentes à execução? ‘Pirataria’ é um rótulo flexível, que é utilizado de forma igualmente flexível. Juridicamente, fala-se em ‘violação de direitos autorais’, algo que representa um número considerável de condutas bastante diferentes, que devem ser vistas de modo igualmente diferente.
No caso da TV digital, faz sentido alertar para esta ‘pirataria’?
P.M. – No que diz respeito à implementação de sistemas de DRM em geral – não apenas em se tratando de TV digital – a justificativa do ‘combate à pirataria’ é utilizada de forma estratégica, de modo a ocultar as principais funções e objetivos da tecnologia envolvida.
Quais as funções dos sistemas DRM que não estão sendo discutidas às claras?
P.M. – O que sistemas de DRM fazem é muito mais do que simplesmente estabelecer uma arquitetura para o controle de acesso e reprodução de informação. Na verdade, sistemas de DRM, em sentido estrito, são arranjos tecnológicos complexos, destinados à execução automatizada de contratos eletrônicos, acoplados a instrumentos de monitoramento de consumo. Proteção anticópia faz parte de sistemas de DRM, evidentemente, mas coibir reprodução é apenas uma dentre outras funções exercidas, a serviço de um objetivo maior. Este objetivo, resumidamente, não é combater a pirataria, mas estabelecer uma infra-estrutura tecnológica que permita a titulares de direitos autorais praticar discriminação de preços de forma abusiva.
O que isso significa em termos práticos?
P.M. – É possível, a partir de sistemas de monitoramento, fazer perfis detalhados dos hábitos de consumo de qualquer pessoa e ajustar os preços do conteúdo oferecido conforme estes perfis. Se um consumidor está disposto a pagar R$ 5 por uma música, e outro está disposto a pagar R$ 15, cobra-se conforme faixas de preços condizentes com a disposição de pagar que cada consumidor tenha em relação a um mesmo bem, escondendo-se variações díspares de preço por trás de ‘promoções’, ‘pacotes’ ou ‘planos’. Fora de uma arquitetura de DRM, fica muito difícil determinar com eficiência quais são as faixas de preço que se pode estabelecer, o que limita a possibilidade de discriminação. Além disso, pode ser problemático fazer com que certas disposições contratuais sejam executadas conforme o previsto, bem como conseguir adesão de consumidores a faixas de preços que se revelam muito contrastantes, em relação a um bem idêntico.
É uma função bem diferente de ‘impedir cópias’…
P.M. – Sendo os sistemas de DRM aparatos tecnológicos que, por um lado, impedem os consumidores de manipular informação fora dos limites traçados por um contrato de licença – ainda quando a manipulação seria perfeitamente legal –, e por outro viabilizam a elaboração de perfis de consumo que tornam a discriminação de preços mais eficiente e, sobretudo, menos transparente ao consumidor, as tecnologias em questão acabam tendo menos a ver com ‘combate à pirataria’ e mais a ver com a imposição de um modelo de negócios fundado em discriminação de preços abusiva.
Quais as implicações disto para o modelo da TV digital?
P.M. – Teoricamente a programação do SBTVD é aberta e o modelo de negócios dos radiodifusores seria sustentado por publicidade, como ocorre tradicionalmente. Dependendo, todavia, do padrão de DRM adotado, é possível transformar a TV digital em um sistema de entrega de conteúdo pay-per-view e pay-per-listen. Além de bloquear usos legítimos de conteúdo, como já afirmado em resposta à primeira questão, outra possibilidade que se abre é a de se transferir para a TV aberta o modelo de negócios da TV a cabo. Os radiodifusores podem até negar que essa seja a intenção, mas estudando-se alguns dos padrões técnicos estabelecidos internacionalmente, é impossível chegar a uma conclusão diversa do que a de que algumas infra-estruturas existentes de DRM foram concebidas exatamente para este tipo de uso.
O governo diz que precisa tirar o DRM dos conversores mais simples porque o preço do aparelho está muito alto. Por outro lado, o acordo desenhado agora impõe o sistema aos aparelhos mais sofisticados. O consumidor não fica, assim, encurralado entre estas duas opções?
P.M. – O consumidor fica em uma posição no mínimo ingrata. O processo de fixação de padrões técnicos para o SBTVD tem assumido um nítido caráter antidemocrático. Estamos expostos a informações ambíguas e a um estado de constante incerteza quanto ao futuro da TV digital no Brasil, quando a totalidade do processo deveria ser transparente e aberta à participação da sociedade civil. Não se sabe muito bem qual será o desfecho da questão, se e quais sistemas de DRM serão adotados, se haverá ou não uma norma jurídica obrigando a adoção desses sistemas ou se os próprios radiodifusores e fabricantes de conversores chegaram ou chegarão a um acordo mútuo comprometendo-se em favor da adoção recíproca de determinados padrões técnicos de DRM. O problema, na verdade, não é encurralar um potencial consumidor entre as duas opções mencionadas, mas o que de fato acontecerá com todos os consumidores, atuais e futuros. Ou corre-se o risco de comprar um aparelho caro e que eventualmente não funcione (em razão de não se adequar a determinados padrões técnicos), ou de adquirir um aparelho que funcione, mas funcione submetido a todas as restrições e violações de direitos provocadas por um sistema de DRM.
Por último, existe alguma chance do governo optar por outro tipo de controle de conteúdo que não a barreira nos receptores? Por exemplo, uma criptografia na fonte?
P.M. – Apesar de existir, de fato, alguma chance do governo optar por uma criptografia na fonte sustentando um padrão técnico por meio de uma norma jurídica, a criptografia pode ser feita na fonte pelos próprios radiodifusores de forma autônoma. Se os fabricantes de conversores, a seu turno, aderirem aos mesmos padrões, e não houver a opção de se comprar um conversor que não obedeça a esses padrões e ao mesmo tempo funcione, o resultado prático será exatamente o mesmo caso o governo expressamente imponha o padrão. Seria um acinte maior, é claro, se houvesse disposição legal ou infra-legal no sentido de que o padrão fosse obrigatório. Mas meramente fazer vistas grossas à implementação de um padrão técnico pode causar efeitos práticos idênticos.
Como funciona este ‘controle por fora’?
P.M. – Especificações técnicas relativas a sistemas de DRM são fixadas, usualmente, por consórcios corporativos internacionais. Um acordo entre os vários atores envolvidos em um determinado ecossistema tecnológico – por exemplo, a TV digital – pode levar à adoção generalizada, trans-industrial, de um determinado padrão técnico que institua um sistema de DRM. Se o consumidor não tiver a opção real de comprar um aparelho que fuja aos padrões e ainda assim funcione, o controle estará instituído, independentemente de qualquer decisão governamental. As organizações que fixam padrões técnicos, as chamadas SSOs (Standards-Setting Organizations), acabam funcionando quase como entidades legiferantes, bastando uma ofensiva adequadamente planejada de lobby para forçar o Legislativo de um país (ou mesmo uma agência reguladora do Executivo) a converter padrões técnicos fixados privativamente em direito publicamente posto. Estamos, em outras palavras, atualmente enfrentando problemas jurídicos, tecnológicos e sobretudo políticos, sem ter os instrumentos necessários para reagir às pressões corporativas exercidas sobre os agentes envolvidos nos processos decisórios relativos à implementação do SBTVD.
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Do Observatório do Direito à Comunicação