Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um debate pobre demais

Os vinte anos da Constituinte foram lembrados pela imprensa no fim de semana com algumas observações interessantes, embora algumas delas passíveis de controvérsia. Uma dessas afirmações, assinada pela Folha de S.Paulo, afirma que a Carta promulgada em 1988 resistiu a 62 emendas e a muitas pressões por mudanças e reformas, e que agora uma trégua entre as forças políticas adia alterações mais ambiciosas. De modo geral, diz a Folha, os protagonistas das principais correntes partidárias comemoram o bom momento econômico e deixam de lado as reformas prometidas, situação muito diferente de há dez anos, quando muitas emendas alteraram conceitos consagrados no texto original.

O Estado de S.Paulo preferiu marcar a data com uma entrevista do economista Eduardo Fagnani, da Unicamp, na qual ele afirma que a Constituição brasileira está permanentemente ameaçada por aqueles que querem eliminar as garantias sociais. A tese do professor é que as ‘forças liberais’, desencadeadas principalmente nos anos 1990, tentam reduzir ou eliminar conquistas da Constituinte, especialmente aquelas relacionadas aos direitos dos trabalhadores e aos controles do Estado sobre a economia.

O argumento, observa Fagnani, é que a economia nacional não teria capacidade de se sustentar com os ‘custos’ das garantias ao trabalho. Na verdade, segundo o economista, as dificuldades das empresas naquele período, e até o início desta década, foram criadas por escolhas equivocadas na política econômica, que produziram uma estagnação da economia e desorganizaram o mercado de trabalho.

Exercício de abstração

A reportagem da Folha e a entrevista do Estadão tocam num ponto comum, ou seja, o fato de que o bem-estar econômico produz um relaxamento nas pressões de todos os tipos. Veja, para não variar, segue alinhada aos que o economista Fagnani qualifica como ‘forças liberais’: para a nossa revista mais lida, só as emendas – especialmente aquelas que flexibilizaram o papel do Estado na economia – permitiram que surgissem as condições para o crescimento econômico que o Brasil tem apresentado nos últimos anos.

Esse ponto, ainda controverso, não pode ser levado a debate sem que se coloque, como pano de fundo, as condições específicas em que foram produzidas as privatizações, na década passada, e sem que se faça a devida contextualização dos momentos econômicos da época e de hoje. Infelizmente, esse debate, na imprensa e nos foros periféricos da mídia, ainda segue viciado pelas preferências partidárias dos analistas.

Se o leitor puder fazer um exercício de abstração das opiniões embutidas nas informações apresentadas por Veja, a leitura da reportagem especial sobre os vinte anos da Constituição tem a utilidade de fazer pensar no documento que sintetizou o processo de redemocratização do Brasil e ajuda o cidadão a imaginar que país estava na cabeça dos líderes do Congresso Constituinte, vinte anos atrás.

Lanterna de popa

As opiniões são conservadoras, como era de se esperar, e certas análises não contemplam o leitor com o contraditório. Além disso, seria desejável que as personagens citadas fossem situadas em cada momento histórico específico. O deputado que liderava, na ocasião, o que restara das forças políticas de ‘esquerda’ é hoje o presidente da República, com uma popularidade que parece não conhecer limites. Sua ascensão ao posto máximo da República se deve ao arcabouço de direitos implantado pela Constituinte. O avanço foi inegável, especialmente se considerarmos que ela marca o fim da ditadura no Brasil.

No entanto, nenhum dos jornais ou a revista Veja avança no que poderia ser uma reforma constitucional capaz de contemplar a nova posição alcançada pelo Brasil no cenário mundial, ou que pudesse sinalizar o caminho para um futuro com menos sobressaltos.

Com base nas fissuras que ainda podem ser exploradas na Carta Magna, fortunas nascem da noite para o dia das mais criativas formas de ilegalidade, a corrupção campeia em todas as instâncias da República, a burocracia ainda emperra o acesso da maioria da população aos serviços públicos essenciais, os meios de comunicação seguem organizados segundo critérios pré-capitalistas, favorecendo uma oligarquia grudada no poder, e as decisões sobre o uso do dinheiro público – nos domínios municipais, estaduais ou federal – ainda são tomadas com base em critérios que não contemplam necessariamente os interesses da maioria.

A Constituição do Brasil poderia ser o arcabouço para um projeto de nação que reproduzisse, em termos de políticas públicas, o que a gestão pela sustentabilidade representa para a gestão dos negócios. Mas ainda parece mais com uma lanterna virada para a popa da embarcação. Uma reflexão sobre esse tema merecia mais do que lhe concedeu a imprensa no último fim de semana.

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Jornalista