Na segunda-feira (14/2) a imprensa noticiou intensamente a aposentadoria do jogador Ronaldo Nazário, vulgarmente conhecido como ‘o fenômeno’. O foco da cobertura foi sua entrevista. Suas lágrimas emocionadas e palavras emocionantes preencheram a internet e as redes de TV. O que dizer desta entrevista e da cobertura jornalística? Muito pouco.
Disse Ronaldo que doou sua vida ao futebol. A hipérbole é evidente. Primeiro porque a vida de Ronaldo não acabou. Segundo porque doação é a transferência da propriedade a título gratuito e ‘o fenômeno’ foi excepcionalmente bem remunerado pelos serviços que prestou nos clubes em que trabalhou. Ronaldo recebeu salários, direito de imagem, prêmios em dinheiro por vitórias e títulos, participação em contratos de publicidade firmados pelos clubes em que trabalhou além de verbas de publicidades por contratos pessoais que firmou. Nada do que o cidadão Nazário fez como jogador profissional foi gratuito.
Nenhum jogador é ou pode ser obrigado a doar seus serviços aos clubes de futebol. Se um jogador fizer isto o ato não terá valor porque o trabalho escravo ou análogo é considerado ilegal.
Aposentadoria precoce
É fato. Ronaldo sofreu várias cirurgias e certamente deve ter sofrido bastante. Mas ‘o fenômeno’ se submeteu à tratamentos médicos e programas de recuperação dolorosos porque queria continuar jogando e recebendo pelos serviços futebolísticos e propagandísticos que prestava.
Como qualquer outro trabalhador, o cidadão Nazário sofreu acidentes de trabalho. Ele valorizar sua história pessoal é compreensível. A imprensa dar excessiva atenção á mesma é desaconselhável. Principalmente num país cujas empresas produzem milhares de mutilados e inválidos todos os anos. Somente em 2008, ocorreram 747.663 acidentes de trabalho no Brasil http://www.segurancanotrabalho.eng.br/estatisticas/estult29anos.pdf. Quantos destes operários inválidos e mutilados foram produzidos nas empresas que contrataram os serviços propagandísticos do ‘fenômeno’? Por que a imprensa nunca se preocupa com estes ‘detalhes desagradáveis’ e deu tanta atenção a um jogador acidentado? Ronaldo é ‘mais igual’ e os demais trabalhadores brasileiros que sofrem dores inimagináveis por causa de acidentes de trabalho e doenças profissionais são ‘menos iguais’?
Os mortos-vivos
Ronaldo disse que está se aposentando. A aposentadoria dele é uma outra hipérbole. Todos sabem que ele continuará a ser garoto-propaganda de algumas marcas famosas. Alem disto, ele terá bastante trabalho para administrar o patrimônio que amealhou do longo da carreira. Uma colega twitteira disse-me que era triste ver alguém precocemente aposentado. Triste?
Ronaldo se aposentou do futebol com patrimônio e renda. Não há nada de triste nisto. O que realmente deveria causar tristeza é a tradição empresarial brasileira de rejeitar sumariamente candidatos a emprego com mais de 45 anos. Sem patrimônio, renda ou tempo para aposentadoria, milhares de brasileiros acabam virando verdadeiros mortos-vivos. Mortos-vivos e invisíveis porque a mídia prefere dar excessiva atenção a jogadores de futebol jovens e bem remunerados.
A situação dos operários de meia idade parece ter melhorado durante o governo Lula. Mas isto não pode ser creditado a uma melhora dos padrões empresariais. O fenômeno parece estar ligado ao crescimento da economia aliado à inexistência de mão-de-obra jovem e especializada disponível. Mesmo assim, a situação dos operários mortos-vivos é delicada. Tanto que chegou a ser debatida no Congresso Nacional, onde um Projeto de Lei que obrigava a contratação de empregados com mais de 45 anos por empresas públicas foi rejeitada na Comissão de Constituição e Justiça.
Projeto de Lei nº 530/08 – Análise CCJ contrária
Autor: Deputado Mauro Moraes
Dispõe sobre a obrigatoriedade de contratação de empregados com mais de 45 anos de idade nas empresas públicas com mais de 40 funcionários.
Relator: Deputado Luiz Cláudio Romanelli – Parecer contrário. Aprovado com 3 votos contrários e 1 abstenção. Projeto rejeitado.
A imprensa, entretanto, não tem dado nenhuma atenção a este assunto. Comparadas às lágrimas do ‘fenômeno mais-igual’, as lágrimas dos operários mortos-vivos desempregados e sem renda são tão ‘menos iguais’ quanto as dos 747.663 acidentados em 2008.
Trabalhadores anônimos
Ronaldo disse emocionado que perdeu para o próprio corpo. Outra hipérbole cuidadosamente construída e reforçada pelas lágrimas. O ex-jogador diz que perdeu, mas não o quanto ganhou levando seu corpo ao limite. Ninguém pode dizer que o que Ronaldo ganhou foi pouco ou injusto. Tudo que ele ganhou, ganhou por serviços futebolísticos e propagandísticos prestados e na forma dos contratos que firmou. Quanto ele ganhou é assunto dele e da Receita Federal e o sigilo fiscal do cidadão Ronaldo Nazário é garantido por Lei. Não é isto que pretendo discutir.
Na verdade, não pretendo discutir nem a ênfase que ‘o fenômeno’ deu para sua derrota para o próprio corpo. Cada qual tem o direito de construir para si mesmo discursos e mitos. A função da imprensa, entretanto, não é só reproduzir alguns discursos e mitos. É função da imprensa interpretá-los. Mas não foi isto o que ocorreu esta semana. A maneira passiva como a imprensa recebeu, repetiu e amplificou o que foi dito por Ronaldo é irritante.
Ronaldo perdeu para o próprio corpo e tem sido tratado como herói. As estatísticas estão aí para provar que milhares de trabalhadores brasileiros anônimos perdem partes de seus corpos nas indústrias todos os anos. Eles não são heróis também? A derrota da integridade física e da saúde deles para as precárias condições de trabalho merece continuar invisível?
As verdadeiras questões
Para mim a única coisa útil da entrevista do Ronaldo foi que ela me fez lembrar as palavras de Cornelius Castoriadis:
‘A seletividade é a ideia central para caracterizar o mundo próprio. A representação que o sujeito faz do mundo, o que ele constrói ou cria como mundo, é necessariamente seletivo e em um grau muito forte. Essa seletividade é inicialmente quantitativa: o vivente só pode representar `objetos´ no interior de um determinado raio (não se trata somente, nem essencialmente, de raio `espacial´). Há com certeza a dimensão espaço-temporal, mas há sobretudo uma dimensão qualitativa: o vivente só pode se representar, só pode criar para si o equivalente subjetivo de uma ínfima parte dos aspectos, estratos, camadas do existente físico. A negação da seletividade qualitativa conduziria à postulação de um ser que poderia dar-se simultaneamente todas as realizações possíveis de todas as fenomenalizações possíveis – o que é absurdo. A seletividade corresponde em um primeiro lugar à natureza do mundo, simplesmente – do existente físico. Este não é simplesmente homogêneo: o vivente se cria e se desenvolve parasitando certos estratos desse existente‘ (Sujeito e verdade no mundo social-histórico, 2007, Civilização Brasileira, p.77/78).
Todos são iguais perante a Lei e o respeito à dignidade humana é um preceito fundamental da República Federativa do Brasil. É o que consta da CF/88. Portanto, em tese, podemos considerar que todos são iguais perante a imprensa também. O que ocorreria se os 747.663 acidentados em 2008 exigissem da imprensa um tratamento igual ao que foi dispensado ao Ronaldo? Esta é uma pergunta retórica. No fundo, ela é impertinente. Eles não farão isto. Os cidadãos invisíveis sequer pensarão que uma questão como esta possa ser debatida.
O mais provável é que os 747.663 acidentados em 2008 (e os milhares de operários mortos-vivos com mais de 45 anos) tenham ligado suas televisões, visto as lágrimas do Ronaldo e escutado as palavras do ‘fenômeno da comunicação’. Mesmo sendo inadequado, podemos especular que reação eles tiveram. As experiências pessoais nos ajudam a fazer isto. Quando da morte do Aírton Senna, minha ex-esposa, que era fã do piloto de F1, ficou muito abalada e chorou vários dias. Ela só parou de chorar quando lhe disse que me parecia estranho o fato dela estar chorando mais por causa morte de alguém que ela só via na TV do que por causa da morte do pai dela.
Os acidentados e mortos-vivos representarão para si mesmos os seus sofrimentos e sentimentos com a mesma intensidade com que representarão os sofrimentos e emoções do ‘fenômeno’ na TV e na internet? Duvido muito. A seletividade os impede de fazer isto. Mas a seletividade impede a mídia de tratar com alguma isonomia Ronaldo Nazário e os 747.663 acidentados em 2008? A seletividade impede os jornalistas de dar mais atenção aos milhares de operários mortos-vivos sem emprego e renda do que ao jogador precocemente aposentado com um respeitável patrimônio? Estas, meus caros, são as verdadeiras questões.
De qualquer maneira, agradeço aqui ao Ronaldo e à imprensa que eleva uns para esquecer de muitos outros. Sei que no fundo também eu estou apenas parasitando certos estratos desse existente.
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Advogado, Osasco, SP