Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um jornalismo irresponsável

Um caso isolado, aparentemente hiperdimensionado, e eis que a imprensa brasileira dá vazão ao que há de pior no jornalismo, com a precipitação, o açodamento, em suma, a irresponsabilidade que marcou a cobertura inicial do incidente envolvendo a advogada Paula Oliveira na Suíça. Um episódio agravado pela não menos intempestiva reação de autoridades, que deveriam ser as primeiras a encarar as notícias com cautela até o devido elucidamento dos fatos, coisa que até o momento que escrevo ainda não havia ocorrido.

Tratada com ligeireza e superficialidade, a suposta agressão à brasileira por parte de três skinheads ligados ao partido de extrema-direita SVP, francamente hostil a uma comunidade estrangeira que chega a 10% da população suíça, tem a marca e a cara da jornalismo pasteurizado que a Globo faculta ao Jornal Nacional, que nos dois primeiros dias concentrou-se tão somente na versão da vítima, cujas fotos do corpo retalhado chocaram o mundo e aqui em particular, diante do que pareceu uma demonstração incontestável de xenofobia.

Ataque que pode até ter ocorrido, independente do que disser o laudo oficial das autoridades suíças, dada a freqüência com que incidentes semelhantes ou ainda piores se repetem mesmo nos países ditos mais civilizados. Ainda que os governantes europeus publicamente rejeitem vinculações nesse sentido, ninguém minimamente informado ignora que a realidade dos discursos oficiais na prática é outra, e que a discriminação e os preconceitos de cunho racial e religioso continuam sendo males que afloram a todo momento, em qualquer parte do mundo. Inclusive no Brasil, cuja incômoda colocação entre os países mais racistas, segundo organismos internacionais, vem sendo lembrada por muitos suíços inconformados com o barulho em torno do caso.

Quem cobra está sujeito a cobrança

Mas o fato é que mais uma vez as coisas extrapolaram, com a imprensa, como sempre, tomando à frente do tradicional festival de baboseiras e aberrações destilados a pretexto de uma solidariedade que, ao contrário do que se pretende, escancara ainda mais o complexo de inferioridade que nos mantém reféns de nossa própria mediocridade. Sim, pois nada justifica que se faça um verdadeiro cavalo de batalha em torno de um caso isolado, aparentemente desgarrado do contexto social de um povo reconhecidamente pacato e pacífico, como o suíço. A menos que se queira difamá-lo por conta de um ínfimo rebanho de ovelhas negras, como os ultra-direitistas pivôs de histórias como esta, ou até por causa do hermetismo de seu sistema bancário, que os falsos moralistas agora invocam como prova de má índole.

Mesmo levando em conta a reconhecida vocação da mídia para o sensacionalismo barato, algo do que nem os centros mais adiantados estão livres, incursões por esse modelo inconseqüente de jornalismo se tornam imperdoáveis quando deixam de ser exceção à regra, em prol da defesa unilateral e atabalhoada de fatos sem a devida comprovação. Mais grave ainda é que essa postura seja compartilhada por quem normalmente serve de referencial no meio jornalístico, caso de veículos como a Globo e a Folha de S.Paulo, de longe os que mais se embananaram nessa história, a ponto de se ver colunistas consagrados, como Clóvis Rossi e Eliane Cantanhêde às voltas com a inglória tarefa de justificar o injustificável, ou seja, conclusões baseadas nas aparências.

Como retratações são impensáveis e não coadunam com os egos inflados dessa gente, é provável que as preciosas lições desse episódio se percam, como as de tantas outras vezes. Mas é bom não esquecer que vivemos outros tempos, sob outros ventos, em que, cada vez mais, quem cobra também está sujeito a cobranças.

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Jornalista, Santos, SP