O sociólogo português Boaventura de Souza Santos costuma descrever uma ‘democracia de baixa intensidade’ como aquela que precariza a aplicação dos direitos mais básicos. Algo que a maioria dos brasileiros prefere confortavelmente atribuir a países que ficam a distâncias satelitais, como o Afeganistão e o Iraque.
Pois o Brasil de 2004 é uma democracia de baixa intensidade. Aqui, voltamos a assassinar indígenas (e estes a assassinar garimpeiros, despossuídos como eles) e a lhes negar a demarcação de terras. As prisões brasileiras exibem cenas piores do que Abu Ghraib. Monoculturas para exportação derrubam a floresta amazônica e geram conflitos sociais e ambientais, enquanto são saudadas pela imprensa grande como ‘agronegócio’ gerador de dólares.
Nesse ambiente de direitos rebaixados, as liberdades de expressão e de imprensa viraram um rio de margens bem limitadas. Necessárias para irrigar a democracia, essas liberdades são comprimidas pelo abate crescente de conquistas republicanas de mais de século. E, também, por uma crise econômica que assola as corporações de mídia e as deixa mais sensíveis às pressões políticas contra os jornalistas que insistem em se manterem dignos.
Às demissões com fundo político de Alberto Dines, do Jornal do Brasil e de Jorge Kajuru, da Rede Bandeirantes, além das pressões do governo de Minas Gerais sobre a imprensa, como denuncia o Sindicato dos Jornalistas do estado, agora vem se somar uma condenação do jornalista Lúcio Flávio Pinto, Belém (PA). Todas acontecem sob a miopia das grandes corporações de mídia que preferem não enxergar conexões entre elas.
‘Qüinqüídio legal’
Ex-correspondente da imprensa do sudeste na Amazônia, Lúcio Flávio escreve há 40 anos sobre a parte superior do mapa nacional. Seus artigos, junto com os de Washington Novaes, são a melhor produção jornalística no campo da cobertura ambiental. Seus textos miram um ponto nervoso da construção do Brasil: os modelos de desenvolvimento que destroem o Pará, um dos estados ainda entre os mais ricos em recursos naturais, e toda a região amazônica.
Em seu Jornal Pessoal, elaborado por ele sozinho, Lúcio Flávio pratica um jornalismo crítico, o que às vezes lhe garante processos judiciais dos supostamente ofendidos e a omissão das corporações de imprensa. As mesmas que em uníssono reagiram à tresloucada expulsão do Larry Rother (o do texto difamatório no The New York Times).
O próprio Lúcio descreveu em nota pública a sua recente condenação, que mostra como ora se passa, em Belém, fatos dignos de um conto de Franz Kafka, o mestre da literatura do absurdo:
‘Meus artigos (…) denunciaram atos como a tentativa de apropriação indébita de uma área variando entre 5 milhões e 7 milhões de hectares, no vale do Xingu (área mais conhecida ultimamente como ‘Terra do Meio’. (…) Foi o caso do processo que resultou de uma denúncia feita pelo Ministério Público do Estado do Pará, provocado por representação do desembargador X. [Os nomes verdadeiros de pessoas e empresas foram substituídos por letras para tentar evitar que se consume contra o autor destas linhas as mesmas arbitrariedades verificadas contra Lúcio Flávio. Afinal, Abu Ghraib é, infelizmente, aqui.] O magistrado, que se aposentou neste ano, julgou-se ofendido por matéria publicada no meu Jornal Pessoal, em maio de 2000.
O desembargador, ao deferir um agravo de instrumento proposto em Belém por uma empresa do grupo da Y., do empresário Z., revogou ato do então juiz de Altamira, W.. O juiz havia mandado averbar, à margem do registro das terras que a empresa diz serem suas, a existência de uma ação de cancelamento e anulação dos referidos registros, proposta pelo Iterpa, em 1996. A providência tinha a salutar preocupação de advertir os incautos, eventualmente interessados pela área, que a dominialidade daquelas terras estava sendo questionada pelo Instituto de Terras do Pará. (…)
Apesar da existência da ação de cancelamento e anulação na comarca de Altamira, o desembargador X. declarou, em sua sentença, que as terras eram ‘inquestionavelmente’ de propriedade privada. Revogou o ato do juiz de Altamira em simples liminar, já adentrando o mérito da questão (tanto, que sua decisão continua a ser a âncora de sustentação dessa grilagem, classificada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, em 2002, no Livro Branco da Grilagem de Terras do Brasil, como uma das maiores do país – e, certamente, do mundo). E não se permitiu a cautela de ouvir primeiro o representante do Ministério Público. Consultado apenas quatro meses depois, o MP opôs-se ao ato do desembargador. A denúncia, formulada com base em representação preparada pelo escritório G., um dos mais conceituados de Brasília, foi acolhida, o processo tramitou celeremente e acabei sendo condenado a um ano de prisão, pena convertida no pagamento de duas cestas básicas, de um salário mínimo cada, pelo período de seis meses, em virtude de minha primariedade.
A sentença foi lavrada em 17 de fevereiro do ano passado. No dia 19, saiu publicada no Diário da Justiça. Nesse mesmo dia minha advogada foi ao cartório pegar os autos. Soube, pela escrivã, que os autos tinham sido enviados ao Ministério Público, na véspera. No dia 24, uma segunda-feira, novamente minha advogada compareceu ao cartório. Foi informada que o processo, tendo sido devolvido pelo representante do MP no dia 21, sexta-feira, tinha-lhe sido novamente restituído naquele dia.
Os autos só voltaram definitivamente ao cartório no dia 28 de fevereiro. No dia 3 de março, segunda-feira, minha advogada, finalmente, pôde retirar os autos do cartório. No dia 7, sexta-feira, último dia do prazo, protocolou a apelação, fazendo o processo subir para o Tribunal de Justiça. Ao receber os autos, estranhamos, minha advogada e eu, aquele procedimento. Por isso, como medida de cautela, requeremos por certidão, à escrivã do cartório da 16ª Vara Criminal, privativa dos delitos de imprensa, que atestasse as idas e vindas dos autos, que haviam impedido a ciência do advogado do sentenciado.
Uma vez juntada a certidão aos autos, imaginamos ter resguardado nossos direitos para eventualidade futura. Por isso, ao verificar, na semana passada (de 5 a 9 de julho de 2004), que a 3ª Câmara Criminal Isolada do TJE, para quem o caso foi distribuído, havia considerado intempestiva minha apelação, fiquei estupefato, revoltado, indignado. Ao que parece, o responsável pelo parecer do MP limitou-se a constatar a data da publicação da sentença no Diário da Justiça e a contar cinco dias a partir daí, não incluindo o primeiro e considerando o último dia, estabelecendo dessa forma o chamado qüinqüídio legal. Como minha apelação foi protocolada a 7 de março, eu tinha perdido o prazo.’
Escalada antiimprensa
Em apoio ao jornalista, que está recorrendo ao Supremo Tribunal Federal, e em defesa dos direitos republicanos de liberdade de expressão e de imprensa, acorreram algumas das mais importantes organizações da sociedade brasileira, que se recusam a permitir que a barbárie prevaleça neste país. Entre muitas outras, assinam nota de repúdio ao caso Lúcio Flávio o Ibase, o Greenpeace, a Amigos da Terra, a CPT de Altamira e entidades dos jornalistas: os Sindicatos do Pará e do Rio Grande do Sul, a Federação Nacional da categoria e as associações brasileiras de Imprensa e de Jornalismo Investigativo, além do Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande de Sul.
O caso contra Lúcio Flávio Pinto, que simboliza a escalada antiimprensa no Brasil, possivelmente será levado à seção de defesa da liberdade de expressão da Organização dos Estados Americanos.
Na inoperância de um sistema legal que produz fenômenos kafnanianos, e na omissão dos conglomerados de mídia, é, por ora, só o que nos resta.
******
Jornalista; texto também publicado no sítio do Ibase (www.ibase.org.br)