Roberto Carlos ganhou na Justiça, em 27 de abril, o direito de proibir a circulação de sua biografia não-autorizada Roberto Carlos em detalhes. O livro será recolhido de todas as livrarias e suas quase 11.000 cópias em estoque serão queimadas, fruto de um acordo entre sua editora Planeta e a Justiça. A decisão, que envolve questões como censura, liberdade de expressão e direito a privacidade motivou o debate realizado pelo programa televisivo do Observatório da Imprensa na terça-feira (15/5).
No editorial de abertura [ver abaixo], Alberto Dines criticou a omissão da mídia no episódio. Segundo ele, a mídia preferiu poupar uma celebridade a defender o direito de se contar uma história – o que abre precedente perigoso. ‘Biografia é história e a história não pertence às pessoas – história é de domínio público’, disse.
O programa recebeu no estúdio da TVE, no Rio, o escritor Paulo César de Araújo, autor da biografia, e o advogado Marcello Cerqueira; e em São Paulo, a editora-executiva do Estado de S.Paulo, Laura Greenhalgh.
Personagem público
A biografia Roberto Carlos em detalhes tem 500 páginas e foi lançada em dezembro passado. Chegou a vender 22.000 exemplares antes que viessem os protestos do cantor e a disputa judicial. O Roberto criticou especificamente três pontos: a narrativa do acidente de infância, quando ele perdeu parte da perna; a agonia da mulher Maria Rita, que faleceu de câncer em 1999; e revelações de casos amorosos.
A decisão da Justiça foi de recolher a obra, o que provocou a reação de escritores e colunistas, que classificaram o caso como censura. Em entrevista, o jornalista e escritor Lira Neto avaliou que ‘provavelmente criou-se uma jurisprudência perigosa, contra o gênero biografia e contra o próprio exercício da historiografia. Se a gente depender do biografado e dos herdeiros para escrever sobre alguém, é simplesmente a falência do gênero’.
O escritor e professor Deonísio da Silva disse que já era difícil pesquisar a vida de alguém famoso, e que em virtude dessa decisão ficará ainda pior. ‘Não é só a censura do regime militar que faz mal’, advertiu [ver ‘O rei não leu e não gostou‘]. O escritor Paulo Coelho saiu em defesa do biógrafo e, num artigo publicado na Folha de S.Paulo, ficou contra sua própria editora, a Planeta. Ele se disse chocado com a atitude de Roberto Carlos [ver ‘O que é `contexto desfavorável´?‘].
Muitos especialistas criticaram a atitude do Judiciário e da editora. ‘Caso as editoras abandonem o autor nessa questão estarão lutando contra a possibilidade de realizar livros, contra sua própria atividade profissional’, disse o editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, em entrevista gravada. ‘É uma luta comum de autores e editores.’
A determinação da Justiça foi baseada no artigo 20 do novo Código Civil, que proíbe biografias não-autorizadas. O cantor não quer falar com a imprensa, mas o assunto ganhou espaço na opinião pública e o livro já pode ser encontrado na internet e até mesmo em bancas de camelô.
‘Confesso que quando vejo na capa de um livro [o aviso] biografia autorizada, eu não abro o livro’, disse em entrevista ao programa o historiador José Murilo de Carvalho. ‘Não tem valor: a biografia autorizada é uma fraude porque está dizendo que o biógrafo está escrevendo aquilo que o biografado gostaria que ele escrevesse.’
‘O personagem público faz parte da nossa história e o proprietário da história do Brasil é a sua população’, avaliou Luiz Schwarcz. ‘O que está acontecendo é que estamos sendo expropriados de um bem, da nossa própria história.’
Autonomia preservada
Paulo César de Araújo, autor de Roberto Carlos em detalhes, é fã do cantor desde criança, levou 15 anos pesquisando sua vida e entrevistou mais de 250 pessoas para escrever o livro – que, segundo ele, pretendia ser uma homenagem.
No início do primeiro bloco, Alberto Dines disse que a produção do programa havia procurado a editora Planeta, Roberto Carlos e seu advogado, Alvaro Borgerth, para participarem do Observatório. O advogado adiou a resposta até o final do prazo e respondeu com uma série de considerações para serem lidas no programa. Dines comentou que não era assim que se respondia um convite para participar de um programa de TV [ver ‘`Democracia e direito à liberdade de expressão saem fortalecidos´‘].
O apresentador do OI na TV avaliou que existiam três vilões nesse episódio: Roberto Carlos; a editora, que deveria defender o autor e não o fez; e o juiz, que quis rapidamente fazer um acordo e entrar para história como o homem que limpou a barra do rei. E perguntou a Paulo César: ‘Qual é o vilão maior?’.
O autor explicou que o que deveria ser avaliado era a Justiça. ‘O debate que está aqui é: até que ponto, no Brasil, a liberdade de expressão vai depender desse direito de privacidade?’. Segundo ele, o juiz e os dois promotores fizeram todo tipo de pressão para fazer o acordo nas condições que Roberto Carlos queria. ‘E acabaram conseguindo’, afirmando que o contexto estava favorável a Roberto Carlos.
Paulo César disse que os advogados da editora e a própria editora haviam lhe explicado que diante desse quadro era certo que a causa fosse ganha por Roberto, e que por isso optaram por fazer um acordo durante a audiência. O autor disse que ‘queimar livros no século 21 é uma barbárie, não faz sentido nenhum’. E contou que tentou fazer outra proposta para o cantor depois do acordo: ele faria uma revisão nos pontos em que Roberto não concordava e abriria mão de todos os direitos autorais do livro, já que o cantor insistia que perdeu dinheiro com ele. ‘Ele não aceitou. Evidentemente estou indignado porque isso é uma injustiça’, desabafou o autor.
Dines lembrou o caso de Lira Neto, que está escrevendo uma biografia sobre a cantora Maysa e recebeu ajuda por parte da família, especialmente de seu filho, o diretor de TV Jayme Monjardim. E perguntou a Laura Greenhalgh como ela avaliava os dois casos, o de Maysa e o de Roberto Carlos.
A jornalista do Estado de S.Paulo lamentou Roberto Carlos não ter atendido ao convite de participar do programa. ‘Talvez ele não tenha tido a noção da dimensão do gesto dele, da intencionalidade de barrar o livro na Justiça. Isso é uma coisa absolutamente obscurantista’, disse. E comentou que mesmo assim ele estava abrindo um debate, porque a partir desse um ‘fato lamentável’ é possível gerar uma reflexão. Laura disse que o fato de a família de Maysa deixar o biógrafo trabalhar é algo muito bom. Citou o problema que a Companhia das Letras teve com a biografia do Garrincha (Estrela solitária, de Ruy Castro) por causa da família do jogador.
Laura avaliou que biografias de figuras históricas são pontuadas por momentos de grande dimensão, mas também há tropeços, o que é natural do ser humano. ‘O trabalho do biógrafo é extremamente importante e a prerrogativa da autonomia dele deve ser preservada’, disse. ‘Estamos com mais de 11.000 obras para serem destruídas e isso é um absurdo’.
Bela causa
Na seqüência, Dines perguntou a Marcello Cerqueira: ‘Por que a Justiça favoreceu o direito da privacidade contra o direito da sociedade usufruir de uma informação?’. O advogado – e procurador-geral da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro – afirmou que a questão sai da órbita do direito constitucional, já que cada uma das partes tem sua razão. E comentou que a Constituição fala tanto da liberdade de expressão quanto da inviolabilidade da vida privada. ‘O jogo está empatado’, disse.
Marcello Cerqueira avaliou que não houve censura porque esta só pode ser classificada como tal quando é realizada por parte do Estado. E analisou ter havido uma atitude desagradável por parte de Roberto Carlos, uma atitude complacente do Judiciário, uma atitude ruim da editora e vacilante por parte do autor, que deveria ter constituído advogado próprio e não aceitar o da editora, que é influenciada por interesses comerciais. Cerqueira comentou ainda que se o autor estava tão inconformado com a decisão da Justiça, ele tem legitimidade ativa para entrar com uma ação rescisória.
Paulo César de Araújo comentou que quando foi para audiência, imaginava que esta seria conciliatória e não condenatória. E que ambas as partes iriam ceder. Esclareceu que o livro não é apenas sobre Roberto Carlos, mas uma história da música popular brasileira que tem o cantor como fio condutor. ‘Ele reclamou sobre 5% do conteúdo e mesmo eu tendo proposto uma revisão, a historicidade do meu livro estava conservada. Era essa a conciliação que eu achava que iria ser feita’, explicou o autor.
Laura Greenhalgh disse ter ficado claro que o livro de Paulo César é baseado em pesquisas, que não havia algo nele que pudesse ferir o cantor, e que boa parte das informações já haviam sido publicadas. A editora-executiva do Estadão propôs duas questões para Paulo César: ‘Você ficaria intimamente satisfeito em tirar alguns trechos do livro para agradar Roberto Carlos? Você não pensa em voltar a justiça para reclamar aos seus direitos?’
Paulo Cesar explicou que era lamentável ter de tentar uma reconciliação para tirar trechos do livro, mas que isso foi feito em virtude do contexto. ‘Entramos naquela audiência já com o livro indeferido’, disse. ‘Quando os advogados chegaram a um consenso, que era entregar o livro e retirar o processo, eu vi 15 anos de trabalho queimados em uma audiência de cinco horas.’
Alberto Dines questionou Marcello Cerqueira se a situação era mesmo irreversível. O advogado disse que não, e que a ação rescisória deve ser proposta na mesma instância, com o mesmo juiz. Cerqueira lamentou a proibição e disse que o caso deveria ser levado a julgamento. E aconselhou o autor a entrar com uma ação provando que os fatos já haviam sido publicados e que, por isso, não houve invasão de privacidade. Disse que essa era uma bela causa e que, se não tivesse impedimento legal para advogar, a patrocinaria.
Para o futuro
Dines comentou que a editora Planeta não entrou na briga com o ‘rei’ porque está começando suas atividades no mercado brasileiro e não queria ficar malvista. Lembrou que, ainda assim, um contratado da editora, Paulo Coelho, escreveu artigo na Folha de S.Paulo condenando a atitude da Planeta. O apresentador perguntou como Greenhalgh analisava essa situação, do ponto de vista de uma editora de assuntos culturais de um grande jornal.
Laura disse que achou a intervenção de Paulo Coelho na cena pública perfeita, forte e em cima do fato. E recordou o caso do próprio Paulo Coelho, que tem uma biografia sendo escrita por Fernando Morais e abriu todos os seus arquivos para o biógrafo. No entanto, Coelho já tem um sem-número de biografias não-autorizadas publicadas no mundo e nem por isso faz grande caso. Para ela, isso é conseqüência da personalidade de cada pessoa pública. ‘Roberto Carlos me intriga muito quando diz que a sua história é seu patrimônio. Mas não é: a história dele é feita a milhões de mãos’, afirmou.
No início do último bloco, uma telespectadora de Vitória (ES) perguntou a Paulo Cesar de Araújo: ‘Depois desse golpe você tem coragem de escrever outra biografia?’. O historiador afirmou que o caso só fez sua coragem aumentar. Para ele, a própria história do cantor é um estimulante para isso. ‘Ninguém enfrentou mais adversidades que Roberto Carlos. E pesquisando essa história vi o que é uma adversidade e o que o ser humano é capaz de superar’. Paulo César disse ter mais de 250 entrevistas com personagens da música popular brasileira – o único que não quis recebê-lo foi Roberto Carlos. Afirmou que a partir desse material outros livros virão.
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A censura do ‘rei’
Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 416, exibido em 15/05/2007
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Há um novo censor na praça. Ele não usa farda, toga ou touca de terrorista, nem parece um esbirro da inquisição. O mais recente censor das nossas paragens é cantor, xodó das mulheres. E não obstante cometeu uma das maiores violências contra a liberdade de expressão.
Quando Roberto Carlos entrou com uma ação para embargar a venda da sua mais recente biografia, mostrava o grau de autoritarismo que ainda impregna a sociedade brasileira. Curiosamente, a mídia quase não estrilou, fingiu que não era com ela, não enxergou (ou não quis enxergar) o perigo político. Preferiu poupar o Rei, não queria desmoralizar uma celebridade que já está no pedestal há mais de quatro décadas.
É um engano colocar a questão no plano da literatura e das biografias. Biografia é história e a história não pertence às pessoas – história é de domínio público. Estabelecido o perigoso precedente de censurar uma biografia, breve teremos a censura de obras de ficção, censura de peças de teatro e censura de filmes sob o pretexto de que seus personagens se parecem com gente de carne e osso tiradas da vida real.
Assim, de concessão em concessão, alimentamos a megalomania das celebridades e passamos uma borracha na história do nosso tempo.