Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Um político a serviço dos radiodifusores

A morte do senador baiano Antônio Carlos Magalhães, na sexta-feira (20/7), pode ser considerada um acontecimento simbólico na esfera política nacional por muitas razões, mas, em particular, para o setor da comunicação social, pelo desaparecimento de um ícone da prática do coronelismo eletrônico, que representou para o Brasil – como diria Daniel Herz – ‘as vontades que se opõem à democratização da comunicação’.

A trajetória de Antônio Carlos Magalhães (ACM) na política brasileira foi extensa. No momento de sua morte, ocupava mandado de Senador da República pela segunda vez. Do ponto de vista da comunicação social, a carreira do baiano – nascido em Salvador há 79 anos – foi especialmente ousada. ‘Estreando no Ministério das Comunicações um estilo que marcou suas passagens por governos e órgãos públicos, Antônio Carlos Magalhães iniciou muito cedo uma luta implacável contra seus inimigos políticos’, escreveu Daniel Herz no livro A história secreta da Rede Globo (Ed. Ortiz). Representante no governo do setor econômico da radiodifusão, ACM teve, segundo seus críticos, uma atuação exemplar em interesse próprio – ele também era radiodifusor.

Porém, antes de assumir o Ministério das Comunicações – do qual foi o titular entre 1985 e 1990, no governo Sarney (Nova República) – Magalhães foi um grande aliado da ditadura militar que governava o país. ‘ACM foi uma figura que nasceu na ditadura, foi construído na ditadura, como uma grande fatia de políticos dessa geração. Só que a diferença dele para a maioria desses políticos, é que ele teve essa capacidade de se manter no poder praticamente até agora, até sua derrota política na Bahia’, destaca o professor Antônio Albino Canelas Rubim, da Universidade Federal da Bahia, lembrando que ACM passou de um mando autoritário e colado aos militares (o poder dele emanava da sua relação com os militares) para um outro tipo de mando, ‘que tinha características autoritárias, mas que era feito no regime democrático’, assinala.

Esse novo mando, em boa medida, segundo Rubim, dependeu do controle que ACM tinha sobre os meios de comunicação da Bahia. ‘Assim, ele foi capaz de se reciclar, passar para um governo democrático e permanecer no poder, quando a maioria dos políticos da ditadura entrou em colapso. Ele teve uma sobrevida impressionante, considerando sua relação com a ditadura’, observa.

Atuação na Constituinte

Venício Lima, pesquisador e professor da Universidade de Brasília (UnB), lembra das manobras de ACM, na época da Assembléia Constituinte (1987/1988), quando o então ministro comandou uma bancada específica para garantir que os interesses dos radiodifusores fossem contemplados no capítulo da Comunicação Social da nova Carta. Venício acompanhou as discussões da Comunicação e os acontecimentos, tanto na Comissão Temática quanto na subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação, Informática e Educação, cuja relatora era a deputada Cristina Tavares (PMDB-PE). ‘Houve uma ação coordenada, tanto na subcomissão, quanto na comissão, que ficou conhecida como a ‘bancada da comunicação’, que representava os interesses dos radiodifusores, e era coordenada de fora pelo então ministro Antônio Carlos Magalhães. O irmão dele fazia parte da subcomissão e da comissão’, lembra o professor.

Às iniciativas dos radiodifusores enfrentaram – e venceram – as propostas democratizadoras apresentadas pela Frente Nacional de Lutas por Políticas Democráticas de Comunicação. Integrada por partidos de esquerda, organizações dos trabalhadores, representantes da academia organizações classistas e movimentos sociais, a Frente originou o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). A história do capítulo da Comunicação na Constituinte foi escrita por Venício Lima para o Centro de Estudos e Acompanhamento da Constituinte, da UnB, publicado em caderno especial. A análise do capítulo pode ser lida clicando aqui.

Da trajetória de Antônio Carlos Magalhães nas comunicações, Venício destaca a sua gestão no governo de José Sarney, a qual ele chama de ‘período áureo’. Nesta fase, na opinião do professor, foi quando houve a forma mais direta e evidente do uso da mídia eletrônica como moeda política (um tipo de negócio batizado de ‘coronelismo eletrônico’), da qual o exemplo de ACM é o mais expressivo no país. ‘Ele (ACM) foi, com certeza, o ministro das Comunicações que mais se utilizou desse tipo de negócio. Foi o indivíduo que conseguiu usar seu poder político de forma mais intensa, formando um império próprio de comunicação’, aponta. O uso como moeda política das concessões de rádio e televisão foi largamente apontado pelo FNDC, cujos comitês, organizados em vários estados, disseminaram informações sobre a comunicação brasileira até então restritas aos gabinetes de Brasília e a alguns setores da academia.

Império forjado no governo

ACM possuía uma rede de retransmissoras sem paralelos no país. Suzy dos Santos, professora do programa de pós-graduação e da escola de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), descreve em seu artigo Coronelismo, radiodifusão e voto: a nova face de um velho conceito, as propriedades que Magalhães mantinha, junto com sua família e alguns aliados: Era proprietário da Rede Bahia, que domina todos os segmentos de comunicações no estado, seis geradoras de TV aberta e 311 retransmissoras – todas afiliadas à Rede Globo; uma emissora de TV UHF; parte de operadora de TV a cabo da capital, com outorga também em Feira de Santana; parte de uma operadora de MMDS com outorgas na capital, em três cidades do interior da Bahia e em Petrolina-PE, afiliadas à franquia Net Brasil, também da Rede Globo; duas emissoras e uma rede de rádio FM; um selo fonográfico; uma editora musical; um jornal diário; uma gráfica; e uma empresa de conteúdo e entretenimento.

O Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom) realizou e publicou a pesquisa denominada ‘Donos da Mídia’, que pode ser vista aqui. Embora esteja parcialmente desatualizada (nova pesquisa está em andamento para a atualização), ela ilustra adequadamente como se estruturou o ‘coronelismo eletrônico’ no país, cujos alicerces assentam-se no domínio das emissoras de televisão. Regionalmente, o poder de ACM ergue-se especialmente pelo controle dos MCMs e, destes, a televisão. Ascendendo ao Minicom, ACM obtém o direito de retransimitir o sinal da TV Globo.

Segundo o Ministério das Comunicações e o Diário Oficial da União, no período de 1985 a 1988 (Governo Sarney), quando ACM era o titular do Ministério das Comunicações, foram outorgadas 632 rádios FM; 314 rádios OM; 82 TVs. Ao total, foram 1.028 concessões e permissões.

Feito um cartório

ACM beneficiou-se com uma prática que expandiu nacionalmente. Representante de um importante setor econômico, o da radiodifusão, ACM atuava em interesse próprio, reafirma o jornalista Sérgio Murillo, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). ‘O ACM ajudou a formar a imagem do ministério como um cartório de grupos de rádio e TV do país. Ele era o agente político desses grupos que controlam a mídia no país. E foi um dos mais competentes neste sentido, nessa tradição de misturar interesses públicos com interesses privados’, avalia Murillo.

Suzy dos Santos considera que Antônio Carlos Magalhães teve um papel crucial no fortalecimento da rede clientelista que configura o mercado de radiodifusão brasileiro nos últimos 20 anos. ‘O coronelismo eletrônico não começa com a dupla ACM/Sarney. Começa ainda na ditadura militar. Mas o auge desse sistema é, de fato, a atuação de ACM no Ministério’, avalia Suzy. Junto com Sarney, ACM optou por reforçar ainda mais o clientelismo que já existia no governo militar. ‘Era como se os militares se afastassem do poder deixando a mídia com pessoas próximas de suas idéias, divulgadas pelo rádio e pela televisão’, segundo Suzy.

Coronelismo ameaçado?

‘Não acho que a morte de ACM, nem a derrota política dele e de Sarney nas últimas eleições, marquem o fim do coronelismo eletrônico. O sistema de barganha política entre esfera federal e elites oligárquicas locais é mais complexo e arraigado’, diz Suzy. Venício Lima aponta para o surgimento de um ‘coronelismo eletrônico de novo tipo’, por meio do qual as rádios comunitárias se transformaram em instrumento de barganha política (leia aqui).

O professor Canelas Rubim pensa que a morte de Magalhães não é tão significativa para acabar com o coronelismo eletrônico. ‘Acho que o controle anti-democrático dos meios de comunicação, hoje, passa por mecanismos mais sutis e talvez até piores, porque mais truculentos, não tão abertamente antidemocráticos, dissimulados’, diz, afirmando que as novas estruturas têm tramas muito mais complexas, mais difíceis de desmontar.

A Rede Bahia é uma das regionais da Globo que dá maior lucro e as maiores audiências até hoje, ‘é uma rede empresarialmente muito competente’, destaca Rubim. Segundo o professor, porém, pela primeira vez no ‘Carlismo’, ACM e seus aliados não têm nenhum peso no governo federal, nenhum peso no governo estadual e nenhum peso no governo municipal. ‘Nunca, na história do Carlismo, eles estiveram alijados simultaneamente dessas três linhas de poder. Talvez isso afete mais do que ao grupo político, mas também, financeiramente, as empresas dele, que recebiam recursos muito grandes do governo federal, estadual e municipal em outros momentos’, analisa.

Sérgio Murillo também acredita que não houve ainda uma superação dessa era. ‘O país tem ainda muitos coronéis eletrônicos. A estrutura do sistema de comunicação no Brasil não se altera. E a novidade, nos últimos, é a participação cada vez maior dos grupos religiosos nos meios de comunicação’, aponta. Simbolicamente, conforme Murillo, sai de cena um dos artífices dessa estrutura. ‘Darão continuidade os filhos e netos do doutor Antônio Carlos Magalhães, assim como os filhos do jornalista Roberto Marinho. São empresas que, embora sejam cada vez mais profissionalizadas, mantêm ainda a presença da administração familiar muito marcante, e que deve honrar a administração anterior’, analisa.

Caminhos opostos

Para os que lutam pela democratização dos meios de comunicação no Brasil, Antônio Carlos Magalhães representou a extrema oposição. Conforme o artigo de Suzy dos Santos E-Sucupira: o Coronelismo Eletrônico como herança do Coronelismo nas comunicações brasileiras, (leia aqui) publicado pela Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação – Compós, em 2006, ‘A dominação pelos coronéis dos principais meios de comunicação nas esferas locais e regionais configura uma barreira à prática de cidadania no país’, isto porque a compreensão das referências que elaboram a construção de sentidos na sociedade está intimamente relacionada à compreensão das forças que ligam os indivíduos em relações sociais simétricas ou assimétricas. ‘Neste viés, o domínio dos espaços de debate público mostra-se uma das mais relevantes ferramentas de persuasão social’, escreve Suzy dos Santos.

Em momento algum, em sua vida política e de empresário da mídia, ACM atuou para que o espaço da comunicação fosse ‘mais oxigenado, mais plural, mais representativo da diversidade social, política e econômica do país’, destaca o jornalista Sérgio Murillo.

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Da Redação FNDC