Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um debate que a mídia deve fomentar

Em artigo neste Observatório (‘O Estado, a mídia e a criminalização dos movimentos sociais‘), denunciamos a crescente criminalização dos movimentos sociais em nosso país. O fenômeno teve novo capítulo semana passada, quando repercutir na mídia uma ata (de caráter confidencial) do Conselho Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, que por unanimidade deliberou acerca de ‘designar uma equipe de Promotores de Justiça para promover Ação Civil Pública com vistas à dissolução do MST e a declaração de sua ilegalidade’.


Pareceria um ato isolado do parquet gaúcho, não fosse o oferecimento de denúncia, por parte do Ministério Público Federal em Carazinho (RS), contra oito líderes do Movimento Sem Terra, como incursos em crimes contra a segurança nacional (Lei 7.170/83) [ver aqui]; e a ação penal intentada contra José Batista Gonçalves Afonso, advogado da Comissão Pastoral da Terra, militante pelos Direitos Humanos na região de Marabá (PA), e Raimundo Nonato Santos da Silva, ex-coordenador regional da Fetragri, pela ocupação da Superintendência do INCRA em Marabá, em abril de 1999. (Em recente decisão da Justiça Federal de Marabá, os dois foram condenados a 5 anos e quatro meses de prisão; ver aqui.)


Os acontecimentos remetem à discussão: está o Ministério Público cumprindo as funções que lhe foram atribuídas na Constituição de 1988, ou está atuando politicamente, de forma parcial, conservadora e elitista?


Sistema caótico


Consagrado pela Constituição Federal como função essencial à Justiça, o MP tem como atribuições institucionais, arroladas no art. 129 da Constituição Federal, a titularidade da ação penal, a tutela de interesses públicos, coletivos, sociais e difusos; a titularidade da ação direta da inconstitucionalidade genérica e interventiva; atua também como garantidor do respeito aos Poderes Públicos e aos serviços públicos; defesa dos direitos e interesses das populações indígenas; intervenção em procedimentos administrativos e controlador externo da atividade policial.


Enfim, a Constituição Cidadã conferiu ao órgão ministerial um papel de verdadeiro ‘advogado da sociedade’ – e não apenas da sociedade, mas do Estado Democrático e Social e Direito. Seus integrantes têm garantidas a liberdade funcional, a vitaliciedade, a inamovabilidade e a irredutibilidade de subsídios. O ingresso na carreira se dá por concurso público e prova de títulos.


O desvirtuamento de suas funções parece óbvio quando o ‘advogado da sociedade’ torna-se ‘advogado de uma parcela da sociedade’. Ao defender a extinção do Movimento Sem Terra, a tomada de medidas contra suas manifestações e a criminalização de seus integrantes, o Ministério Público assume a causa do latifúndio e do agronegócio, atuando sob a falsa premissa de ‘proteção da ordem pública’. Como falar em ordem no caótico sistema social brasileiro, em que temos uma das piores distribuições de renda e de terras cultiváveis do mundo? Em 1987, os Titãs, na música ‘Desordem’, já questionavam: ‘Quem quer manter a ordem?/ Quem quer criar desordem?’


Capacidade de indignação


O MST é um movimento social com atuação política. Nem poderia ser diferente: a causa da reforma agrária é justa e tem origens no modelo de colonização implementado pela Coroa Portuguesa (com o das Capitanias Hereditárias, que dividiu a parte que cabia a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas em 15 lotes, distribuídos a 14 donatários).


A FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) considera a reforma agrária ‘mecanismo imprescindível do desenvolvimento rural’, defendendo ‘mudanças na estrutura fundiária e no modelo agropecuário brasileiros, considerados o principal fator da desagregação social, econômica, ambiental e cultural no campo’ (ver aqui).


Por fim, este modelo criminalizante de atuação do Ministério Público é incompatível com a ordem constitucional vigente, não correspondendo aos anseios políticos e democráticos da sociedade brasileira. E esta é uma discussão que a mídia deveria fomentar. Cobrar da multidão de brasileiros excluídos que se sujeitem aos canais ‘democráticos’ de manifestação é ignorar a capacidade de indignação e mobilização do povo. Urge que os membros do parquet reflitam no sentido de aprimorar sua atuação, defendendo a democracia que tantos anos lutamos para reconquistar.

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Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, Porto Alegre, RS