Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um depoimento que pode ajudar

 

Tomara que o depoimento de Xuxa ao Fantástico (20/5, ver aqui) tenha o efeito desejado: diminuir os abusos sexuais de crianças e incentivar as vítimas a denunciarem abusos.

O depoimento levou 24 mil internautas a manifestar sua solidariedade à artista durante o programa. A imprensa entrou imediatamente no tema, ministros se manifestaram, deputados aproveitaram a deixa. Tudo isso cria a expectativa de uma mobilização maior quando se trata de abuso contra crianças. Pelo menos isso era o que Xuxa deveria estar planejando quando resolveu se expor.

O formato do quadro apresentado no Fantástico – as perguntas não são mostradas ao público – não é novo, mas faz efeito, com aquele tom confessional e íntimo. E ela foi falando: do começo da carreira, do amor por Ayrton Senna, do negócio proposto pela equipe de Michael Jackson e, finalmente, dos abusos que sofreu na infância até a adolescência.

Mas talvez o melhor tenha sido o momento em que ela fala dos sentimentos que experimentou como resultado da violência sofrida: achar que poderia ser a culpada, ter medo de falar para os pais, se achar feia e suja. O sentimento e as lágrimas – mostrados sem grande exagero – pareceram sinceros. Mas a veracidade teria sido mais realçada se, quando o assunto foi o abuso, a edição fosse outra. Se a pergunta tivesse ido ao ar, se o espectador soubesse como o assunto surgiu (afinal foram mais de 30 anos de silêncio), não haveria dúvidas de que a única intenção da artista ao se expor foi ajudar as crianças.

Faltou deixar claro que há uma campanha, que existe um telefone para denúncias e que alguma coisa precisa ser feita para evitar que os abusos contra crianças continuem acontecendo. Do jeito que foi ao ar, deu margem aos comentários (que não foram poucos) acusando a artista e a TV Globo de estarem apenas fazendo sensacionalismo em busca de audiência.

Fazer a diferença

Sensação reforçada quando os apresentadores – displicentes e nada comovidos – prepararam os espectadores para um depoimento “forte e comovente”. No final, repetiram a frase e foram logo falando do próximo quadro do programa. Se a Rede Globo estivesse realmente motivada contra a violência infantil, teria sido um grande momento para falar do Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (18 de maio) e das iniciativas relativas ao assunto.

É impossível acreditar que Xuxa tenha concordado em falar de um assunto tão traumatizante apenas para ganhar notoriedade, como disseram alguns comentaristas. É o tipo da fama que não acrescenta nada. As declarações dela sobre os relacionamentos com Pelé e Ayrton Senna seriam suficientes, se o objetivo era esse. O erro maior está na emissora, que poderia aproveitar e continuar o assunto, mostrando, pelo menos, os números conhecidos sobre o abuso sexual de crianças no Brasil.

Disse o promotor de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo, Lélio Ferraz de Siqueira Neto, à Folha de S.Paulo (22/5): “A declaração da apresentadora traz à luz um problema que só entre janeiro e abril deste ano rendeu mais de 34 mil denúncias pelo serviço Disk 100, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos”.

Embora a apresentadora tenha dito à imprensa, nos dias seguintes, que não quer mais falar do assunto (no que, convenhamos, tem toda razão), a exploração da sua imagem certamente não vai parar por aí. Já tem deputado querendo que ela vá depor na CPI do abuso infantil e a própria Rede Globo, se perceber que o assunto pode render ibope, vai querer a presença dela em novos programas.

A verdade é que pessoas como Xuxa, que já foi a “rainha dos baixinhos”, podem fazer uma grande diferença. Oxalá o depoimento faça o efeito desejado e não acabe parecendo, como disseram alguns, apenas um golpe publicitário.

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[Ligia Martins de Almeida é jornalista]