Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Um pote até aqui de mágoa

Um artigo do compositor Chico Buarque (ver aqui), publicado pelo Globo na edição de quarta-feira (16/10), insere algumas ponderações interessantes em torno do aquecido debate na mídia sobre a liberdade de expressão. Essencialmente, o ídolo da música popular se queixa de erros cometidos por biógrafos que usam a imprensa como base de pesquisa primária.

Como se sabe, há mais de vinte anos os jornais e revistas vêm deixando de ser considerados fontes confiáveis para pesquisadores sérios, exceto quando o objeto da pesquisa é a própria imprensa. Chico Buarque pondera que, ao colher informações na imprensa, sem confirmar sua veracidade e, em alguns casos, sem fazer uma criteriosa ponderação sobre o contexto em que tal informação foi publicada, alguns autores dão seguimento a erros ou malversações da mídia, acabando por atingir a honra ou a reputação do biografado.

O compositor se refere especificamente a um livro intitulado Eu não sou cachorro, não, no qual o autor afirma que ele teria acusado Caetano Veloso e Gilberto Gil, quando estavam exilados em Londres, de haverem denegrido a imagem do Brasil no exterior. Acontece que essa era uma informação falsa, inventada por um colunista do extinto jornal Última Hora do Rio, em 1971, que na época funcionava como uma espécie de porta-voz dos setores mais radicais da ditadura militar. O autor do livro simplesmente copiou a nota publicada numa coluna do jornal, que havia inventado a tal entrevista de Chico Buarque, em pleno governo do general Emilio Médici.

Chico observa que jamais teria dado uma entrevista àquela publicação, sendo ele mesmo, na época, perseguido pela ditadura e boicotado oficialmente pela TV Globo. De fato esse episódio mostra a negligência do autor ao dar crédito a fonte tão desqualificada. Daí essa mágoa toda.

Na mesma página do Globo pode-se ler outro artigo (ver aqui), do jornalista Ernesto Rodrigues, biógrafo de Ayrton Senna e João Havelange, que critica os integrantes do movimento Procure Saber, iniciadores da polêmica sobre o direito dos biografados. Rodrigues vai por outro viés, abordando o direito à privacidade de pessoas cujo sucesso depende exatamente da exposição pública, e questionando algumas alegações em torno de direitos financeiros do biografado e descendentes sobre eventuais ganhos do autor da biografia.

A responsabilidade da imprensa

O debate enveredou por labirintos tão obscuros que não se pode mais encontrar a ponta da meada. Em parte porque alguns dos opositores à liberdade de criação dos biógrafos são os compositores e cantores Gilberto Gil e Caetano Veloso, cujas vidas pessoais sempre foram deliberadamente expostas por eles mesmos como estratégia de relacionamento com o público.

Além disso, o movimento Procure Saber tem à frente a empresária e produtora Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano e apontada publicamente como personagem mais versada em finanças que em arte. Lavigne lidera uma campanha contra a comercialização de biografias não autorizadas, o que, na prática, significa eliminar a biografia da relação de gêneros literários praticados no Brasil.

Sensatamente, biógrafos e outros autores e jornalistas ponderam que uma biografia autorizada não passaria de um press-release em formato de livro, e que para tal o biografado deveria contratar uma assessoria de relações públicas.

O artigo de Chico Buarque encaminha a discussão para outra questão, bem mais complexa: o equilíbrio entre liberdade de expressão e responsabilidade, o que envolve diretamente a imprensa no imbroglio.

O gênero biografia nunca foi muito popular no Brasil, mas vem ganhando terreno com as transformações da indústria cultural. O culto às celebridades estimula não apenas as produções de filmes e vídeos sobre pessoas famosas, mas acaba chegando ao mercado editorial. Até pouco mais de duas décadas, esse gênero se limitava a meia dúzia de especialistas com carreiras consolidadas como biógrafos, entre eles Fernando Morais, Moacir Werneck de Castro, Ruy Castro e Francisco de Assis Ângelo.

No meio da barafunda em que se transformou o debate, que alcançou elevada temperatura nas redes sociais, cabe aqui ao observador pontuar o que concerne à imprensa nesse litígio.

Não é breve o que se pode ponderar, além do que disse Chico Buarque em seu artigo, mas o essencial é apenas isto: todo pesquisador que se dispõe a construir biografias, fundamentar estudos ou produzir historiografia com base nos arquivos de jornais e revistas brasileiros, corre grandes riscos.

Leia-se, por exemplo, o que disse a mídia sobre o ex-ministro Luiz Gushiken, recentemente falecido: uma biografia dele baseada na imprensa resultaria no emporcalhamento de sua memória – no entanto, ele foi inocentado de tudo que em vida lhe foi atribuído pelos jornalistas.

Que tal uma lei que garanta a liberdade dos autores e ao mesmo tempo defina as responsabilidades de todos, inclusive e principalmente das fontes primárias?