Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma crise silenciosa

 

A revista britânica The Economist publica neste final de semana reportagem sobre a situação de haitianos e seus descendentes que migraram ou nasceram na República Dominicana. Por 75 anos, o governo dominicano garantiu a cidadania a quase todas as pessoas nascidas no país, independentemente da origem de seus pais.

Há cinco anos, porém, começaram a ocorrer anulações de documentos de cidadãos nascidos em território dominicano mas cujos pais haviam se instalado ali em situação ilegal. Tratava-se, claramente, de uma medida dirigida especificamente aos haitianos.

Centenas de queixas foram encaminhadas oficialmente à Comissão Latinoamericana de Direitos Humanos, que condenou formalmente a nova política mas não tomou qualquer medida no sentido de corrigir essa distorção.

Agora, a perseguição se agravou e cerca de 200 mil cidadãos dominicanos podem ser considerados apátridas de uma hora para outra após toda uma vida como cidadãos da República Dominicana, simplesmente pelo fato de serem negros de descendência haitiana.

Mas a imprensa latinoamericana, e especialmente a imprensa brasileira, parece cega e surda diante do drama que persegue o povo do Haiti.

O Brasil, através de sua mídia, aprendeu a olhar com compaixão para o povo daquele país ao longo de décadas. A tirania da família Duvalier, seguida da dominação por gangues e policiais corruptos, ajudaram a construir esse sentimento de solidariedade. O auge dessa relação aconteceu em 2004, quando a seleção brasileira de futebol foi ao Haiti para uma partida contra a equipe local.

As imagens de milhares de haitianos acompanhando o ônibus que levava Ronaldo Fenômeno e outras estrelas do futebol correram mundo e produziram documentários de sucesso, como O dia em que o Brasil esteve aqui, dirigido por Caio Ortiz e João Dornelas. O evento serviu para manter a atenção da imprensa brasileira sobre o que acontecia naquele país, principalmente com a grande presença de soldados brasileiros nas tropas enviadas pela ONU.

Depois veio o devastador terremoto de magnitude 7, que na tarde de 12 de janeiro de 2010 arrasou a capital haitiana. Durante a fase mais dura da crise humanitária que se seguiu, milhares de brasileiros se juntaram ao esforço internacional para amenizar o sofrimento do povo do Haiti, enviando alimentos,  remédios e equipes especializadas de defesa civil. Tudo registrado pela imprensa.

A tragédia banalizada

Mas o tempo, do qual se diz que cura todos os males, na verdade o que faz é banalizar as tragédias.

A ONU mobilizou seu Alto Comissariado para Refugiados, levantou fundos, mas, a um mês de se completarem dois anos da tragédia, ainda há pelo menos 700 mil haitianos fora de suas casas, alojados precariamente em acampamentos ou abrigados provisoriamente em casas de famílias que foram poupadas pelo terremoto. O principal trabalho da ONU foi o de providenciar documentos, e grande número de cidadãos que conseguiram resgatar suas identidades deram início, há alguns meses, a um lento e penoso êxodo em direção à América do Sul.

O caminho dos refugiados passa pela República Dominicana, de onde são tangidos pela nova política repelente do governo local, fazem a travessia do Caribe para o Panamá e dali seguem, pelo Equador, Peru e Bolívia. A maior parte deles esté neste momento concentrada na cidade de Brasiléia, no Acre, que forma com Epitaciolândia a tríplice fronteira com a boliviana Cobija.

E o que tem a imprensa brasileira a ver com isso?

Aparentemente, nada. Eram, até o final da semana, mais de 800 haitianos abrigados em um pequeno hotel e em algumas casas de Brasiléia, mantidos pelo governo do Acre e pela solidariedade dos moradores da cidade. Na maioria, são homens jovens, de até 40 anos, profissionais de construção civil, mas há entre eles mulheres grávidas e crianças muito pequenas.

Antes que a imprensa tradicional do Brasil descobrisse essa pauta, ela era publicada no dia 13 passado pelo jornal inglês The Guardian (ver aqui), na pista de uma reportagem produzida por este observador juntamente com o blogueiro Altino Machado, e publicada pelo portal Terra Magazine (ver aqui e aqui)

No mesmo dia, uma equipe da TV Globo esteve na região, para uma reportagem sobre o risco de uma epidemia de dengue. Os jornalistas enxergaram os mosquitos – carapanãs, como são chamados no Acre – mas não viram os haitianos.

Na noite de sexta-feira passada, dia 16, o Jornal Nacional finalmente descobriu a história. Só então os jornais do Sudeste acordaram para o problema. Nesta terça-feira, dia 20, uma audiência pública de emergência, realizada na Comissão de Relações Exteriores do Senado, deu partida a uma solução para o drama.

Isso revela que, quando a imprensa se movimenta, muitas crises podem ser evitadas.