Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Uma demissão da inteligência e idoneidade

‘Tem dias que a gente se sente;
Como quem partiu ou morreu;
A gente estancou de repente;
Ou foi o mundo então que cresceu;

A gente quer ter voz ativa;
No nosso destino mandar;
Mas eis que chega a roda-viva;
E carrega o destino, pra lá.’

Foi assim, como nesta letra do Chico, que me senti quando recebi a notícia da demissão do Walter Pica-Pau Silva da Rádio Cultura de São Paulo. Ele é pai da minha mulher, Celina. Nós três, jornalistas, estamos agora desempregados. Ela, em Curitiba; eu, perdido em Sampa. Ela, a Celina, tem 53 anos, eu, 59, o Walter, 75. Somos considerados jornalistas ‘jurássicos’ e, por isto mesmo, descartáveis.

No caso do Walter, foi falta de respeito mesmo. A importância dele, para a boa música brasileira, é tão grande que ele não tem nem casa própria. É isto mesmo, pois é assim que os profissionais de talento indiscutível como o dele são tratados neste país: descartados, escanteados para que não incomodem a falta absoluta de inteligência, empobrecidos materialmente para que não tenham como reclamar seus direitos.

As leis do mercado

Acho que o jornalismo brasileiro passa por uma fase não-espiritual, super-materialista, super-capitalista. E pessoas como o Walter apenas sabem como lançar excelentes cantores, como fazer grandes shows, como gravar discos inesquecíveis que se tornarão eternos. Como se tornaram. É só isso que ele sabe fazer como jornalista e produtor musical.

Ele, como eu, como minha mulher, como o Eureni, como o Varassin, como tantos outros anônimos sem poder de decisão, não sabemos sensacionalizar uma notícia, não temos preocupação com a audiência, não aceitamos presentes nem propinas, não falamos bem nem mal dos amigos ou dos inimigos dos patrões. A nossa preocupação é com a verdade, com a notícia, com a investigação jornalística inteligente. E não é nada disso que está no ar ou impresso. Por aí, dá para entender o porquê de tantos jornalistas desempregados Brasil afora.

Não quero começar a olhar o mundo como naquele poema de Bertolt Brecht: ‘Àqueles que vêm depois de mim’. Mesmo porque ainda tenho esperança. ‘Deus dá o frio conforme o cobertor.’ O aprendizado de uma geração tem que ser respeitado pela próxima porque é a experiência daquela que moldará a base desta. O afastamento do Walter é sintomático: o mercado não quer pessoas que pensam, pois assim o caminho fica livre para as Ivetes e Chitãozinhos da vida. Vocês já imaginaram uma rádio que só toca Elis, Chico, Orestes Barbosa, Sílvio Caldas, Gershwin, Pixinguinha, Cartola, Garoto, Mauro Duarte? Já imaginaram uma escola de samba com uma música como aquela que dizia assim: ‘..meu sapato já furou, minha meia já rasgou, eu não tenho onde morar…’? Iria contra as atuais leis do mercado da comunicação.

Tudo nos trilhos

O governo Lula vai numa direção, a de socializar o Brasil, e os empresários vão em outra, que é a de robotizar o pensamento e engessar as emoções e os sentimentos. Por isso, venham a nós os estagiários, peças de reposição baratas. Não quer ninguém que diga que este ou aquele cantor, esta ou aquela matéria simplesmente não é notícia porque não tem valores culturais e/ou sociais. Já imaginaram o Walter pautando um repórter de TV para fazer as reféns de Santo André? Pedindo ao repórter para investigar se a polícia pode ter sido a autora dos disparos que mataram a menina? Para saber por que a mãe de Isabella não fez BO quando sua filha chegou machucada em casa? E o que aquele PM suicida suspeito de pedofilia estava fazendo no prédio de onde ela foi jogada?

Não dá audiência. Se essas questões fossem ao ar, aos impressos, nenhum jornalista poderia chamar o suspeito de assassino antes de a Justiça se pronunciar.

A imprensa não é um poder da República, mas se transformou no mais importante deles porque a Justiça e a falta de consciência crítica dos jornalistas permitiram que ela, a imprensa, fizesse pré-julgamentos e decidisse quem é ou não é culpado disto ou daquilo. Isso dá audiência, isso vende revistas e jornais.

Em sua época, Brecht sentiu o problema e escreveu aquele que é um dos mais belos poemas do mundo. Ele também tinha esperança. Mas não sabia que a evolução do espírito humano seria tão lenta. Quase não percebemos. Só a História percebe, só ela dá conta de explicar as mudanças. Por isto, a imprensa tem a obrigação de contar a verdade, senão a História sai dos trilhos, faz a nação desaparecer. Napoleão, Hitler e Mussolini subjugaram a Europa, a História verdadeira foi contada, e tudo está novamente em seus trilhos.

As armas dos humildes

Aqui, a grana, o poder, o lucro, a ambição e a fama impedem o conhecimento da História do Brasil. Não deixa que se fale dos torturadores da ditadura, nem que se peça a punição deles, mesmo porque muitos se elegeram parlamentares, outros são empresários de sucesso. A melhor punição para os torturadores seria, sem dúvida, a sociedade tomar pleno conhecimento de seus atos. Só isto bastaria, mas nem isso é permitido.

Será que o sofrimento de tantas Marias e Clarisses não foi o suficiente para criarmos um pouco de vergonha na cara? Será que a obra de Plínio Marcos, Chico Buarque, Machado, João Cabral de Melo Neto, Ulysses Guimarães, Zumbi dos Palmares não foi inteligente e talentosa o suficiente para nos ensinar alguma coisa mais séria do que isto que estamos vendo?

Demitir o Walter é tirar dos trilhos da História o vagão da música. É a maior falta de respeito que poderia ser feita a uma pessoa como o Walter Silva. É um desrespeito ao trabalho de uma vida. Mais que isto, um trabalho que hoje não pode ser feito por mais ninguém, a não ser por sua própria filha, sua melhor aluna, também desempregada. Porque os outros da mesma estirpe e época do Walter estão desaparecendo aos poucos, estão sendo jogados para fora do mercado.

Apesar desta triste constatação, os algozes daqueles que constroem o pensar digno e decente se esquecem que acima deles existe uma Luz que defende e dá armas aos humildes. Armas indestrutíveis: a serenidade para aceitar as coisas que não podemos modificar; a coragem para mudar aquelas que podemos; e a sabedoria para distinguir umas das outras. É com essas armas que se constrói a História.

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Jornalista, Curitiba, PR