“Estamos vivendo um momento de total degradação humana. Meu sobrinho perdeu não só o direito de ir e vir, mas principalmente perdeu o direito à vida” (O Globo, 11/5/205). Este foi o desabafo do empresário Farlen Macieira, tio do alpinista industrial Ulisses da Costa Cancela, de 36 anos, morto por um tiro de fuzil na cabeça numa noite de sábado quando tentava voltar para casa, em Petrópolis, após uma festa. O fato repercutiu em toda a imprensa carioca não apenas por uma morte a mais no circuito da violência no Rio de Janeiro, mas principalmente pelo fortuito da circunstância: a vítima, que se fazia acompanhar da mulher e de um casal de primos, entrou por engano numa favela.
Naturalmente emocional, o desabafo do empresário traz, no entanto, uma expressão sobre a qual a mídia não tem tido oportunidade – ou foco noticioso – para se debruçar, mas que demanda uma reflexão pausada da comunidade interessada: “degradação humana”. Primeiro, a vítima estava em meio a uma manobra para retornar depois de se ter dado conta do engano, quando o carro que dirigia foi alvo não de um disparo de advertência (o que já seria em si mesmo preocupante), mas de 25 tiros de fuzil. Ou seja, a intenção dos atacantes era a de matar todos os ocupantes do veículo.
Um evento brutal, claro (que não é inédito, pois se podem registrar outros enganos trágicos semelhantes em favelas cariocas), mas por que humanamente degradante, como sugere o empresário em seu desabafo? Uma resposta pode ser buscada na desmedida, uma velha palavra para os excessos que, não raro, apagam as fronteiras entre a humanidade e a barbárie. A tentação inicial talvez seja a de se fazer o contraste entre humanidade e animalidade, mas a temperança reflexiva sugere que a violência desmedida, assim como o ódio radical, é coisa humana. Já se disse, e com razão, que jamais se explicará a vontade exterminadora dos nazistas, comparando-os a bestas ferozes. O nazismo foi certamente inumano, porém jamais não-humano.
Aqui, nesse ponto, a mesma temperança pode acolher a dúvida sobre se não será um exagero associar a brutalidade nazista ao comportamento de traficantes de drogas que, entocados em seus redutos urbanos, reagem insanamente ou alucinam uma invasão territorial à simples visão de um “outro” no meio da noite. Há, no entanto, um ponto em comum, que é a experiência de uma comunidade ao inverso, onde o ódio substitui o vínculo social, e o crime suplanta a lei.
Cobertura exacerbada
O que quer que digam os legisladores que lavam as mãos por ignorância ou por imitação de Pilatos, ou então as “belas almas” paternalistas de certas organizações não-governamentais, a violência desabrida, no passado ou no presente, tem sempre como objetivo “a metamorfose dos homens em cadáveres vivos” (Hannah Arendt). Por outro lado, não há como “poetizar” musicalmente, literariamente, “contraculturalmente” os focos de violência falada ou atuada que se disseminam na urbe nacional.
Nunca foi tão urgente quanto agora o aprofundamento da discussão institucional e pública sobre a questão da violência no Brasil. No início de maio, a colunista Flávia Oliveira advertia que “um tanto de profundidade faria muito bem a um debate que avança em terreno subjetivo, repleto de certezas inconsistentes” (O Globo, 3/5/2015). Ela referia-se ao clima de agressividade em torno do projeto de redução da maioridade penal, que tem sido conotada como uma espécie de cura para todos os males da violência urbana. As estatísticas mostram que “os menores não são maioria no crime, muito menos nos casos hediondos”.
Isso não significa que se deva minimizar o problema da delinquência juvenil no grande espaço urbano. Mas também não significa que se deva compactuar com a exacerbação da cobertura jornalística, tendente a deslocar para o menor o problema da criminalidade com suas “macrocircunstâncias” na sociedade nacional. O problema é maior. A desumanização ou a “degradação humana” de que falou o tio da vítima na favela deve ser discutida no âmbito muito maior da degradação da vida republicana.
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro