Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma farsa burlesca

Os jornais paulistas noticiaram com discrição, há uma semana, a nomeação, pelo governador Geraldo Alckmin, do advogado Ricardo Salles como seu secretário particular. Salles, que vem tentando a carreira política há duas eleições, chegou ao governo a bordo de um grupo de ativistas radicalmente conservadores e tendo como bandeiras a defesa da ditadura militar que comandou o Brasil entre 1964 e1984 e a oposição radical ao governo federal.

Nos últimos quatro anos, à frente do movimento chamado Instituto Endireita Brasil, ele tem verbalizado opiniões controversas sobre direitos de minorias e outros assuntos, entre os quais divulga uma versão da história política do Brasil na qual os militares não cometeram os crimes de que são acusados. No entanto, por mais descaracterizados que estejam os partidos, a assimilação de tal personagem no ninho dos tucanos tinha que ser problemática.

A polêmica esquentou na quarta-feira (4/4) por conta do escritor Marcelo Rubens Paiva, que protestou, em sua coluna no Estado de S.Paulo, contra o fato de Alckmin se fazer acompanhar de seu novo secretário justamente em solenidade de entrega de parte dos arquivos digitalizados do Dops. Marcelo Paiva fez publicar cópias de documentos relativos à prisão de seu pai, o desaparecido deputado Rubens Beyrodt Paiva. O escritor exige uma retratação do secretário e um pedido de desculpas por parte do governo paulista.

Na mesma edição, o Estadão traz críticas, ainda que cautelosas, à nomeação de Salles, por conta de correligionários do governador que têm suas biografias ligadas à resistência contra a ditadura.

Finalmente a bordo de um cargo político, Salles trata de amenizar seu discurso, rejeitando a radicalidade que lhe deu a projeção necessária para chegar ao Palácio dos Bandeirantes. Dali, certamente irá tentar novamente o caminho das urnas nas próximas eleições, agora beneficiado pela polêmica que provocou.

Paralelamente, o episódio revela como o poder é capaz de aplainar opiniões: se Ricardo Salles, perto do poder, deixa de ser o radical reacionário que se exibia na internet, antigos militantes de esquerda também repudiam seu próprio passado ao contemporizar com o ruidoso advogado.

Radicalismo virtual

Alberto Goldman, vice-presidente do PSDB que fez carreira no Partido Comunista Brasileiro, declarou que, “no mínimo”, Salles “desconhece a história brasileira”. Já o senador Aloysio Nunes Ferreira, que participou da luta armada contra a ditadura, como militante da Aliança Libertadora Nacional, tento atuado durante muito tempo como motorista e guarda-costas do líder guerrilheiro Carlos Marighela, surpreende ao colocar panos quentes na questão: “Discordo quando se tenta negar a existência de violações aos direitos humanos”, contemporizou.

Nenhum dos dois cogita pedir ao governador a substituição do seu secretário, nem avaliza a exigência de retratação feita por Marcelo Rubens Paiva – o que indica que o PSDB está tão disposto a absorver o radical ativista de extrema-direita quanto está o PT à vontade na companhia do pastor e deputado Marco Feliciano, radical militante do obscurantismo religioso que virou presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara.

Para complementar o quadro, o pastor e deputado Feliciano declara à Folha de S.Paulo que é filho de mãe solteira e que sua mãe mantinha uma pequena clínica de abortos no interior de São Paulo, nos anos 1970. Ao mesmo tempo, decide que as reuniões da comissão serão fechadas ao público, para evitar protestos. No Globo, destaque para a cantora baiana Daniela Mercury, que assume publicamente uma relação homossexual estável e entra na corrente anti-Feliciano.

O conjunto seria patético, não fosse o retrato do desmanche do sistema partidário brasileiro, que há muito perdeu representatividade, e de certa lassidão nos debates de questões importantes como as conquistas sociais. Quem se der o trabalho de acompanhar os comentários postados no blog do escritor Marcelo Rubens Paiva há de ficar assombrado com a agressiva defesa da ditadura feita por leitores do Estadão, num bate-boca grotesco em que também não faltam radicalidades no lado oposto.

Campeiam meias-verdades por todo lado, e o debate público vira um “vale-tudo” que transforma a democracia brasileira numa farsa burlesca.

As poucas vozes ponderadas parecem levadas por uma avalancha de irracionalidades.