A fotografia de uma ilha de 20 mil metros quadrados na Bahia de Todos os Santos, estampada em todos os grandes jornais nas edições de quinta-feira (18/8) surpreende o leitor por seu significado metafórico: o substantivo “ilha” vem inevitavelmente seguido do adjetivo “paradisíaca”, ainda mais se essa ilha fica no deslumbrante litoral da Bahia. No entanto, a imagem representa o inferno da corrupção, dos privilégios e das fraudes que envergonham e entristecem o Brasil.
A imagem também faz recordar o famoso sermão do poeta britânico John Donne segundo o qual “nenhum homem é uma ilha”. Alguém mais pragmático que o poeta metafísico poderia dizer: “Nenhum homem deveria possuir uma ilha”. Mesmo que essa posse seja provisória, segundo a legislação.
De fachada
Tudo isso vem no rastro da surpreendente revelação de um esquema gigantesco envolvendo a indústria química brasileira, que pode ter gerado a sonegação de R$ 1 bilhão em tributos.
O noticiário informa que a quadrilha começou a atuar ainda nos anos 1990, e de lá para cá consolidou uma operação tão bem articulada que, apesar das evidências de fraudes, deixava de mãos atadas os auditores fiscais.
De certa maneira, a revelação do esquema reabilita em parte a mal explicada Operação Satiagraha e recoloca na crônica policial o empresário Daniel Dantas, ainda que de forma indireta: uma de suas empresas é citada por haver se beneficiado das irregularidades quando ainda tinha outro proprietário.
Uma família tradicional de empresários baianos está no centro do episódio, que pode envolver dezenas de outros personagens. Os 23 acusados inicialmente presos e a revelação de que pelo menos 300 empresas instaladas no Brasil e no exterior eram usadas para as fraudes aponta a possibilidade de se tratar da maior organização criminosa ligada a negócios lícitos de que se tem notícia no Brasil.
A complexidade das relações entre os envolvidos esconde, na verdade, um golpe primário: a quadrilha comprava produtos químicos por meio de empresas de fachada, registradas em nome de pessoas simples – pedreiros, motoristas e outros cidadãos cuja renda não era suficiente para a declaração obrigatória ao Imposto de Renda. Depois repassava o patrimônio e fechava o “empreendimento”.
Por essa razão, pode parecer estranho ao leitor mais atento como esse esquema sobreviveu e progrediu tanto durante quase vinte anos.
Por quem gritam as manchetes
O que as reportagens insinuam, mas não afirmam, é o papel de grandes indústrias do setor no final da cadeia produtiva que se iniciava com a compra de matérias primas por parte de empresas fantasmas.
Quando a fiscalização descobria que o imposto declarado na origem não havia sido pago, os chefes do esquema simplesmente transferiam o patrimônio da empresa autuada para outros destinos, inclusive para o exterior, a União ficava sem ter como se ressarcir e o objeto do crime, desaparecia. No entanto, as substâncias seguiam a cadeia dos processos, até o pátio de alguma grande indústria química devidamente certificada como empresa socialmente responsável.
A partir daí, os jornais evitam especular sobre responsabilidade criminal. Os jornalistas sabem que, se um cidadão comum adquire um carro roubado, vai acabar no prejuízo quando a polícia localizar e apreender o objeto do crime. Simplesmente fica sem o carro e não tem como recuperar o dinheiro.
No noticiário sobre o grande esquema de fraudes no setor químico, a imprensa não chega perto de explicar como fica a sequência de ganhos que termina numa empresa respeitável – que acaba se beneficiando de um produto que tem origem criminosa.
Se há uma fraude que dificulta o ressarcimento do Fisco em uma etapa da cadeia de negócios, é de se perguntar por que o prejuízo tem que ser sempre do público, do Tesouro, e não distribuído entre aqueles que acabaram lucrando com a venda do produto final.
Esse é um tema que demoraremos a ver discutido na imprensa. Melhor voltar à ilha metafórica cuja fotografia acalenta sonhos de consumo nas primeiras páginas dos jornais.
Uma manchete sobre fraudes da iniciativa privada ou sobre corrupção no setor público é sempre um aviso melancólico para a sociedade, como os sinos fúnebres de uma igreja. Como diria o mesmo poeta britânico, somos na verdade um arquipélago e ninguém deve perguntar por quem os sinos dobram, assim como não se deve perguntar por quem gritam as manchetes.
Os sinos dobram – e as manchetes gritam – por você.