Alívio foi o sentimento de muitos – dentre os quais, me incluo – após ter lido o artigo intitulado ‘Que pena!’ do jornalista Jânio de Freitas (colunista da Folha de S. Paulo), (25/02/2007). Para quem não teve a oportunidade de ler, além de recomendar, tomo a liberdade de citar:
‘É a nossa incapacidade de organização mental que impede o debate, a sobreposição de argumentos não necessariamente opostos. A discussão estabelecida a partir da morte do menino João Hélio ajuda a entender o que faz tantas decisões necessárias ficarem sempre para um amanhã custoso, quando não inalcançável, como uma regra natural a que os brasileiros não podem fugir.
Tratava-se, na origem, de outra reprise comovida e bem precisa. Era a evidência de cada vez mais menores envolvidos em crimes cada vez mais horrendos, como autores ou para encobrir comparsa adulto, e da conveniência, ou não, de alguma medida legal talvez capaz de atenuar esse problema, em prazo curto.
O que daí resultou, depressa, foi a balbúrdia. Foi a dispersão de um tema preciso, e de inquietação generalizada, em infindáveis variações desviantes. Desde a formação histórica do país, dos traços remanescentes da escravatura à responsabilidade social da imprensa, à culpa de toda a sociedade, à necessidade de reforma sócio-econômica geral e muito mais. Até à ressurgência de Amaral Netto, com sua velha pena de morte, agora apresentado sob a forma de professor de filosofia movido à irreflexão. E aquele tema preciso, imediato, acessível? Muito poucos, dos tantos jornalistas, ‘especialistas’ e leitores em geral que se pronunciaram, mantiveram-se afeitos ao tema original, alguns com eficácia e brilho. A regra foi o varejo de supermercado.’
‘Lição’ da Candelária
Desde o terrível acontecimento encontrava-me paralisada, perguntando-me o que diria, além do óbvio, se, como pesquisadora na área, tivesse que opinar publicamente?
E o que é óbvio?
É óbvio que a redução da idade penal surgiu como ‘mensagem subliminar’, ‘válvula de escape’, como a mão do mágico que distrai a platéia com lenços coloridos (nesse caso, infelizmente, sujos de sangue), enquanto a outra mão trata de tirar um coelho de dentro da cartola.
É óbvio que falar sobre a banalização da vida não produz mais sequer alguma reflexão, visto ter-se tornado realmente banal. A primeira vez que discuti esse tema na mídia foi através de um artigo na Zero Hora de 1o de setembro de 1993. Na mesma página, uma charge de Sampaulo computava as mortes do mês de agosto daquele ano: Candelária, 08, Polícia Militar, 04, Vigário Geral, 21.
O mês de agosto vangloriava-se para o mês de setembro de feitos anteriores, pois a ‘chacina da Candelária’, na verdade, ocorreu em 23 de julho de 1993; alguém lembra do impacto na época? Sete meninos e um jovem adolescente foram assassinados a tiros. A chacina ocorreu sob uma marquise em frente à igreja da Candelária, quando cerca de 50 crianças, todos moradores de rua, dormiam. Os sobreviventes relataram que cinco homens desceram armados de dois carros e atiraram para matar. Teria sido ‘uma lição’ porque um deles apedrejou o carro particular de um policial. Um dos sobreviventes era Alessandro da Silva; sabem quem era? Sandro foi o seqüestrador do ônibus 174 Gávea-Central do Brasil. A primeira pessoa a identificar que ‘Manchinha’ era Alessandro da Silva foi Elza, que em 2000 tinha 45 anos e era mãe de um ‘menino que viveu de céu em céu’ (nas ruas) desde os sete anos (Elza, mãe de Sandro, não foi reconhecer o corpo do filho porque teve medo).
Vítimas ou algozes
Há imensa dificuldade em promover uma reflexão séria que supere uma reação (resposta) violenta, mesmo que a violência tenha sido vicária (assistida) e não vivida diretamente. Mas, assim como a vida do planeta está ameaçada pelo imediatismo do animal racional, a qualidade de vida de todos nós – dos que estão atrás das grades (das residenciais e das penitenciárias) – também está.
Precisamos de organização mental, sim, para retomarmos o sentido dos limites de convivência, dos valores que devem permear as relações humanas. Se as crianças ainda nos sensibilizam, nós, adultos dessa sociedade, precisamos responder pelas vidas e pelo futuro dos que ainda não podem decidir, porque são crianças e precisam do tempo da infância e de tempo para crescer sem se tornarem vítimas ou algozes.
******
Pós-doutora pela University of California at Berkeley em Psicologia Educacional e Desenvolvimento Sociomoral, professora na UFRGS e pesquisadora em Adolescência Identidade e Violência