Fui violentamente censurado ao inserir uma notícia no site do Interlegis, órgão do Senado responsável pela implantação de um projeto, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, de modernização e integração do Poder Legislativo nos níveis federal, estadual e federal, por meio das novas tecnologias de informação, em especial da internet. O centro da notícia, originária do site da Procuradoria Geral da República, era o ingresso em juízo, por parte do Ministério Público, de duas ações que pediam o ressarcimento solidário aos cofres públicos no valor de R$ 984.556,56 por parte de funcionários do Senado e de uma empresa de informática.
Para assegurar o pagamento – dizia a matéria – os procuradores pedem ‘medida liminar de indisponibilidade de bens dos réus’, requerem ‘a perda da função pública, multa civil de cem vezes o valor da remuneração por eles percebidas e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, por cinco anos’.
Os procuradores consideram que três termos aditados a um contrato firmado entre a Casa e a empresa para fornecimento de equipamentos de informática não se enquadraram nas hipóteses em que a legislação brasileira permite a inexigibilidade de licitação e que os funcionários e a Aceco usaram de má-fé, impedindo a Administração de selecionar a proposta mais vantajosa.
Isso foi no dia 4 de abril, segunda-feira. No dia 5, terça, o diretor-executivo do Interlegis, Márcio Sampaio Leão Marques, mandou retirar a matéria do ar, depois de o seu assistente, Marcos Aurélio Correia, furioso, ter feito forte cena inquisitorial junto à colega Mônica Monteiro Cocus e aos estudantes que trabalham pela manhã no jornalismo do órgão.
Ao chegar ao Interlegis mais tarde, verifiquei que meu crachá magnético de ingresso no prédio estava desativado. Entrei assim mesmo e, no caminho, encontrei Mônica, assustada, que me disse ter sido a minha senha de acesso à edição do site também cancelada, fato que mais tarde confirmei. Ouvi, então, dos dois capitães-do-mato que a matéria não ‘tinha conteúdo’ e que ‘não era do interesse dos leitores do site’, basicamente parlamentares e funcionários do Legislativo de todo o país.
Após contra-argumentar que estava sendo vítima de censura, que o Interlegis existe justamente para dar transparência ao Poder e que a matéria era claramente densa de conteúdo, importante para o conhecimento da comunidade legislativa, ouvi do indigitado diretor que ele havia mandado mudar a ‘linha editorial’ do veículo e que eu estava fora do Interlegis. Não satisfeito, na segunda-feira o capataz cancelou meu e-mail. Saiba o leitor que sou há sete anos funcionário de carreira concursado do Senado e que, neste órgão, exerci, durante três anos e meio, várias atividades e funções, nas áreas de comunicação, planejamento e pesquisa. Isso após ter sido diretor de Comunicação do Senado.
Reações
A coluna ‘Brasília-DF’, da jornalista Denise Rothenburg, do Correio Braziliense, contou resumidamente o caso na sexta-feira. No dia seguinte, 9 de abril, o feitor Márcio enviou carta à colunista dizendo que eu havia inserido uma ‘matéria pirata’ no portal, para o qual, segundo ele, eu não trabalhava. Além disso, reafirmava que a notícia era ‘estranha à linha editorial’, acusava-me de usar a matéria da Procuradoria ‘para atingir servidores desta Casa com os quais ele não simpatiza’ e dizia que meu crachá havia sido cancelado porque eu não pertencia mais ao órgão.
O arremedo de ditador, sem qualquer imaginação, quis usar a surrada tática de desqualificar o adversário para impor seu ponto de vista. Até os ácaros dos carpetes azuis da Casa sabem que eu era o editor do portal e que nele imprimi, de 2002 a 2005, uma linha imparcial e apartidária, na qual sempre couberam matérias de denúncias e processos contra parlamentares e funcionários dos Legislativos deste país, ao lado de muitas outras, como exemplos de boa ação legislativa e de atividades do Interlegis, das Assembléias e das Câmaras Municipais. Além disso, formalmente, eu permaneço até hoje lotado no Interlegis, conforme comprova documento emitido pelo órgão de pessoal do Senado.
O Sindicato dos Jornalistas de Brasília, em carta ao presidente do Senado, e a Associação dos Profissionais de Comunicação do Senado, em nota pública, saíram em minha defesa, denunciando a arbitrariedade, a truculência e a ilegalidade praticadas pelo censor-fora-de-época e apoiando a ação do Ministério Público. Em paralelo, recebi manifestações de apoio maciço dos funcionários do Senado, de colegas jornalistas e de todos que tomaram conhecimento dos fatos.
Lições e reflexões
Não conto, aqui, minha história apenas para fazer uma denúncia. Acredito que ela se presta, também, a suscitar reflexões para todos os que militam no jornalismo, na crítica à imprensa, no ensino e na participação-cidadã.
Perguntarão o leitor e os colegas jornalistas: diante de um fato como esse, pode-se acreditar que um veículo estatal deixe de ser chapa-branca e permita a divulgação de matérias contrárias aos interesses dos Poderes da República? Antes de prosseguir, cabem duas observações:
1)
‘Estatal’, aqui, é sinônimo de pertencente a uma instituição (da administração direta, autarquia, empresa estatal etc.) que é parte de um dos Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. ‘Público’ é de definição menos consensual e um fenômeno mais invisível e raro no Brasil, mas, genericamente, diz respeito ao veículo de múltipla propriedade, com programação de teor mais educativo, cultural e informativo, objeto de maior controle por parte da audiência e que não pertence a entes estatais ou empresas. No Brasil, a Fundação Padre Anchieta é a entidade que mais se aproxima desse conceito. O paradigma, para quem se especializou na discussão sobre este tema, é a PBS norte-americana. ‘Privado’ é o veículo de propriedade de uma empresa ou de um grupo.2)
Já trabalhei em jornais e emissoras de TV desses três tipos de veículos.Voltando à pergunta, minha resposta é sim, apesar de o episódio relatado acima denotar o contrário. Durante o período em que trabalhei na TV Senado e em que editei o Portal Interlegis, pode-se afirmar que ali estava presente a liberdade de expressão. Em palestras a estudantes, vereadores e outras platéias sobre a TV e o portal, sempre disse que eram os veículos mais independentes em que havia trabalhado. Cito sempre, como exemplo, um fato significativo: o líder do MST, João Pedro Stédile, teve uma entrevista sua cancelada pela Radiobrás durante o governo FHC e, logo em seguida, falou livremente ao colega Beto Almeida na TV Senado. A Radiobrás de hoje, comandada por Eugênio Bucci, autor do livro Sobre ética e imprensa (Companhia das Letras, São Paulo, 2000), é bem diferente e, de forma democrática, abriga notícias contrárias ao governo Lula.
Os princípios básicos que sempre nortearam os veículos do Senado são praticamente obrigatórios: o Legislativo é multipartidário e o mais transparente dos Poderes e os veículos deste Poder têm que primar pela seriedade, se querem obter o respeito do público e da imprensa. Por essas razões, obrigam-se a contar tudo o que está acontecendo e a buscar a maior objetividade possível. Passaram por tropeços? Sim, em momentos críticos, mas conseguiram manter intactos os princípios gerais.
Para ser justo, ainda, ressalto mais duas experiências. Uma: quando fui chefe de setor e repórter da TV Cultura de São Paulo. No tempo em que lá trabalhei, de 1991 a 1994, praticava-se um jornalismo desabrido, ousado, desamarrado. E no Correio Braziliense, na era Ricardo Noblat, antes da invasão bárbara dos interesses os mais inconfessáveis, fazíamos um jornalismo independente, combativo e, ao mesmo tempo, justo.
É claro que, em todos os meios de comunicação em que atuei – estatais, públicos ou privados –, sempre testemunhei pressões no sentido de se omitirem informações ou de se privilegiarem notícias de instituições e pessoas de maior prestígio ou influência. Especialmente no caso de jornais privados, vi a censura agir, mesmo depois da redemocratização – coisa nada original, diga-se de passagem – em função de alinhamentos políticos ou de interesses comerciais.
Linha editorial todos os meios possuem. No caso dos veículos estatais, há uma tendência de se valorizar a boa imagem da instituição e dos seus chefes. Mas há também – e isso é mais perigoso e condenável – a vontade quase incontrolável das autoridades maiores de considerarem propriedade privada os veículos sob a sua responsabilidade. Algumas vezes, elas realizam essa vontade e submetem os jornalistas à transformação de profissionais da informação pública em agentes de propaganda. Essa é uma ‘linha editorial’ que todos devemos abominar.
Max Weber, o sociólogo-referência quando se fala nas formas de constituição da autoridade, incluía entre os seus tipos de dominação a tradicional, cuja expressão principal é o patrimonialismo. Em termos rápidos e rasteiros, é quando o grupo no poder se apropria dos instrumentos de governo e os utiliza como seus. Trata-se, em Weber, algo próprio da sociedade patriarcal, fechada, e, no nosso caso, como bem identificou o jurista e cientista político Raymundo Faoro, de prática que vem do colonialismo português, em que a elite confunde os seus interesses com os interesses do Estado.
É o que tentam implantar ainda hoje muitos mandatários, sejam presidentes, ministros, parlamentares, chefetes, na área de comunicação e, é claro, também em outras, talvez mais rentáveis. E, como disse antes, muitas vezes eles conseguem, como no caso da imitação-barata-de-imperador que dirige o Interlegis, cuja violência se abateu muito mais do que apenas sobre mim: foi contra o órgão, o Senado e, antes de tudo, contra os leitores. Há sempre um fascista de plantão querendo torpedear a verdade informativa.
Constituição
Só que esta tendência, embora reincidente, vem encontrando cada vez maior resistência no meio jornalístico, acadêmico e no próprio público. A forte reação das entidades de classe e de uma rede de pessoas dentro e fora de Brasília no caso descrito por mim mostra que os coronéis remanescentes dos séculos de 16 a 19 não encontram mais terreno fácil para as seus ímpetos autoritários. Posso estar sendo ingênuo ou otimista em excesso, mas percebo que cresceu, em geral, a consciência de que os meios estatais devem prestar um serviço público sem restrições ideológicas, partidárias ou burocráticas.
A diretriz central que, na minha opinião, deve orientar os jornalistas, os críticos da imprensa, os formadores de opinião, a docência universitária e os leitores/telespectadores/ouvintes/internautas na luta pela liberdade de informação e pelo uso democrático dos meios estatais é o combate ao patrimonialismo. Como diz a nota da Associação dos Profissionais de Comunicação do Senado, ‘os principais interessados na transparência da informação sobre assuntos de interesse público deveriam ser os próprios órgãos públicos, ainda mais quando tais informações lhes dizem respeito diretamente’.
E isso não é só algo retirado apenas da minha cabeça ou da dos diretores da Associação. Está inscrito na Constituição (apesar de tão vilipendiada e contestada), como bem salienta a carta do Sindicato ao presidente do Senado. Vale a pena relembrar: no Artigo 37, a Constituição reza que ‘A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência’.
Segundo o consultor legislativo do Senado e professor de Direito Constitucional Gabriel Dezen Júnior, em seu livro Curso completo de Direito Constitucional (Ed. Vestcon, Brasília, 2004), o princípio da legalidade ‘significa que a lei deve ser o fundamento de toda a atuação administrativa’. A impessoalidade diz respeito ao fato de que ‘a administração pública deverá agir exclusivamente para o interesse público, e não o privado’. O princípio da moralidade obriga o administrador a se conduzir de acordo com os ‘preceitos éticos’. Quanto à transparência, o Direito Constitucional é claro: ‘Significa que o Poder Público deve agir com transparência’. E a eficiência se define pela imposição à administração pública da ‘persecução do bem comum, por meio do exercício se suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade’.
Diante desses preceitos, é o caso de se perguntar: que lei permite a censura nos veículos estatais? Quando ela ocorre, o responsável pela administração está sendo ético, transparente, neutro, perseguindo o bem comum e o interesse público? Ou está praticando crimes ao contraria a Lei Maior?
Para nós, da área de comunicação, é muito caro, ainda, outro item da Constituição. É o Artigo 5º, inciso IX, que confirma: ‘É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença’. Para aqueles que não se recordam, isso está inserido no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos.
Na democracia, pelo menos formal, em que vivemos, os meios de comunicação dos Três Poderes, assim como as demais estruturas do Estado, são do povo, e não das autoridades. No mínimo, pelo fato de ser o povo quem sustenta esses veículos com seus suados impostos. E, no máximo, pela obediência a obrigações constitucionais e a princípios éticos que deveriam tornar o nosso país uma terra mais civilizada.
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Jornalista, sociólogo, mestre em Comunicação e ex-professor da Universidade de Brasília