Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Violência e controle social

Por ocasião dos 16 dias de ativismo contra a violência à mulher, trago para reflexão a influência da mídia no estímulo à violência em geral e, em particular, contra a mulher.

Certamente, seremos questionadas: o procedimento da mídia, afinal, remete mais à sedução do que à violência. Mas, lembrando Foucault, propomo-nos a apontar os mecanismos de violência sutil da produção de imagens socialmente valorizadas, que controla de forma mais eficiente do que o mando e a violência explícitos. E a presença de violência explícita, que também encontramos em suas páginas, fotos, matérias, programação etc.

Se nos concentrarmos na mídia televisiva, podemos perceber várias formas de violência, a começar pela violência da sua intensa concentração. Os especialistas se dividem sobre o número de famílias que detêm em mãos este formidável poder de decidir o que vamos ver, e o que não veremos, além da interpretação que será dada aos fatos e notícias mostrados – seis ou nove famílias concentram este poder em suas mãos.

Decorre desta violência, mais uma: a violência da usurpação de nosso direito à comunicação. O direito à comunicação é um direito humano que nos subtraem, limitando-o ao ‘direito’ de absorvermos as informações que nos passam, sem nos permitir exercer o direito de dizer e mostrar o que pensamos, aprovamos, desaprovamos. Afinal, a comunicação é uma via de duas mãos – e não de mão única, como nos impõem.

Imposição de modelos

Mas temos também a violência explícita, que se reflete na programação e que a banaliza. Se tirarmos por uma semana os filmes baseados em violência, ficaremos praticamente sem programação filmográfica. Neles, a violência abunda e se banaliza. Gera idéias e modelos. Aumenta a tolerância a esta carga enorme que se precipita em nosso imaginário. E, cúmulo da sofisticação, por vezes chega a ser erotizada – induzindo desapercebidamente (ou não), à aceitação de relações sexuais forçadas e ‘romantizadas’, como foi o caso do artigo do colunista Henrique Goldman, intitulado ‘Carta Aberta para uma Luisa’, na revista Trip, que mereceu cartas de protesto que sequer foram reproduzidas, desrespeitando o direito de resposta.

Ou no noticiário, como ocorreu com o caso do seqüestro seguido de morte da Eloá, em Santo André, intensa e extensivamente explorado em forma de espetáculo, e que parece ter estimulado uma série de crimes contra as mulheres, noticiados na mesma semana.

Ou mesmo no que a Globo decidiu batizar de ‘merchandising social’, quando foca o tema em sua teledramaturgia, como fez em algumas de suas novelas. O que entra em discussão, no caso, é o timing – um número infindável de episódios em que alguma mulher sofre impunemente violência física por parte de algum homem próximo, finalmente coroado por um capítulo em que tal violência é punida. Que valor afinal é mais promovido: a impunidade da violência contra a mulher, ou o contrário?

E temos também a violência implícita, que vem de nossa invisibilidade seletiva (nunca aparecemos com nossas demandas sociais em nossas manifestações e reivindicações, em nossos feitos e manifestações, como especialistas em questões de interesse geral, onde se prefere entrevistar tão-somente homens) e na imposição sutil e poderosa de modelos – de beleza, de comportamento, de consumo, de ‘felicidade’, de valores, de normatização.

Termo de ajustamento de conduta

E estes modelos todos reproduzem imagens mais ou menos sutis de submissão, de manutenção de valores segregadores que já foram largamente ultrapassados pelas transformações sociais que promovemos na estrutura e no tecido social. Nos mantêm presas a uma imagem empalidecida e conservadora, prenhe de valores ultrapassados e conformistas.

A nossa diversidade e o nosso contraditório são cuidadosamente ocultados, através de exibição ad nauseam de um modelo único e repetitivo de jeito de ser e ter, que se confundem…

O impacto dessas imagens – e dessas ausências – na formação da subjetividade deixa suas marcas em uma geração de homens e mulheres.

Em nome da saúde mental e do desenvolvimento pleno e saudável da população, esta situação tem que mudar.

Temos – as mulheres e a sociedade civil organizada – promovido uma série de ações contra alguns destes abusos. Como quando a Campanha pela Ética na TV obteve o ‘direito de resposta’, substituindo o programa de João Kleber por um mês, em que os diversos segmentos sociais ridicularizados em seu programa (mulheres, negros, homossexuais) tiveram espaço para dizer a que vieram. Ou como quando a mesma campanha conseguiu a mudança de horário do Pânico na TV.

Ou, ainda, quando o CLADEM e o Instituto Patrícia Galvão conseguiram um TAC – termo de ajustamento de conduta – com a Kaiser, que bancou um seminário para a discussão da imagem da mulher na propaganda, em conseqüência de suas ‘bolachas’ espalhadas pelas mesas dos bares, com os dizeres ‘mulher e cerveja – especialidade da casa’.

Responsabilidade social

As mulheres conseguiram, ainda, no Norte do país, a proibição da propaganda de uma oficina publicada em revista em que, sobre o rosto de mulher, de olho roxo, se lia ‘Está na cara que precisa de funilaria’. No Sul, a ONG Themis conseguiu multa e a proibição da música ‘um tapinha não dói’.

Outras tentativas tiveram menos sucesso, mas não deixam de ser importantes. Como o processo movido pelo Observatório da Mulher contra a Skol, pela propaganda ‘A musa do verão’, estranhamente transferida do Ministério Público Federal (depois de um ano de tramitação e de tentativa frustrada de chegar a um Termo de Ajustamento de Conduta) para o Ministério Público Estadual, onde terminou finalmente arquivado, sem que a entidade que encaminhou o processo tivesse ao menos sido ouvida.

Ou, ainda, as centenas de cartas de protesto encaminhadas ao jornal O Estado de S. Paulo por sua enquete – em que perguntava a que as mulheres aspiravam mais em termos de políticas públicas, se operação plástica ou outras medidas de embelezamento. Finalmente, a carta de protesto endossada por várias entidades feministas, e outras, protestando contra a matéria publicada na revista Trip, onde um articulista relatava, de forma galhofeira e romantizada, o estupro a que submeteu a empregada doméstica da casa de seus pais para a sua própria iniciação sexual (carta que a revista sequer publicou).

Nesses 16 dias de ativismo contra a violência à mulher, cabe pôr em pauta o papel da mídia na reprodução destes valores execráveis e da naturalização da violência. É mais do que hora de pensar num controle social, exercido pela sociedade civil organizada, para que a mídia efetivamente cumpra a sua função de informar e entreter, com toda a responsabilidade social que lhe cabe, tanto quando a sua propriedade é privada, como quando se trata de uma concessão pública, como no caso da rádio e da televisão.

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Psicóloga, pesquisadora e presidente do Observatório da Mulher