A noite do dia 19 de março de 2006 entrou para a história da TV brasileira. Durante 58 minutos, a Rede Globo, a quinta maior rede de televisão do mundo, dedicou mais de 50% de espaço em um de seus programas de maior audiência nas noites dominicais, o Fantástico, para a exibição do documentário Falcão – Meninos do Tráfico, produção encabeçada pelo rapper MV Bill e pelo coordenador da Central Única das Favelas (Cufa), Celso Athayde, que também atua como empresário do artista. Pela primeira vez, uma emissora televisiva cedeu exclusividade e apostou na repercussão de um dos temas mais espinhosos da sociedade moderna: a investigação do abandono, do medo, do desespero, da fúria, da frustração, da sensação de poder, das desilusões e até dos sonhos que cercam crianças e adolescentes que trabalham para o tráfico de drogas em várias cidades brasileiras.
Durante cinco anos, entre 1998 e 2003, Bill e Athayde aproveitaram as visitas em comunidades carentes por onde excursionavam em turnês para registrar em vídeo, depoimentos sobre essa geração que já se percebe perdida. Com um exercício de realismo poucas vezes mostrado para esse tipo de audiência, a dupla entrevistou 16 falcões (hierarquia do tráfico cujo trabalho é de vigilância noturna contra ataques de grupos rivais ou de invasões policiais) em diferentes localidades do país. Na noite de exibição do Fantástico e passados três anos da conclusão do trabalho, 15 dos falcões entrevistados estavam mortos. O único sobrevivente está preso e vai se transformar em outro documentário produzido por Bill e Athayde.
Sem nenhum tipo de identificação (nunca o artifício dos borrões digitais foi tão utilizado), nem mesmo do local onde as filmagens foram feitas, os menores em situação de risco relataram o seu ponto de vista sobre questões incômodas como violência doméstica, falta de oportunidades no mercado de trabalho, dificuldade no acesso à educação, truculência e corrupção policiais e até mesmo sobre o fascínio e respeito que ganham em suas comunidades ao portarem a tiracolo armamentos pesados como fuzis ou metralhadoras.
– Esse aqui é o meu único amigo –, diz um apontando um fuzil com detalhes prateados.
– As meninas quando me vêem segurando um desse, ficam loucas – diz outro, confirmando que as armas funcionam como um atestado de status dentro dos morros.
Como documentário, Falcão – Meninos do Tráfico não deixa nada a dever em termos de profundidade jornalística a outros dois excelentes filmes-verdade sobre o tema marginalização. Notícias de uma guerra particular‘ (1999) e Ônibus 174 (2004) também tiveram como méritos de grande relevância mostrar que por trás de toda uma estrutura criminal e perversa que se desenvolve no indivíduo há sempre um pesado histórico de fatores que contribuem para a formação desse caráter, quer sejam sociais, financeiras ou até mesmo de auto-afirmação.
Nas armas uma resposta
Em Ônibus 174, por exemplo, o bandido Sandro do Nascimento, que ficou nacionalmente conhecido ao fazer de reféns, ao vivo em rede nacional de televisão, um grupo de passageiros de um ônibus (Linha 174 Central-Gávea), teve toda a sua biografia dissecada por pessoas que conviveram com ele e cujos depoimentos serviram como elemento de compreensão sobre a sua suposta falta de humanidade. Aos 10 anos viu a mãe ser assassinada brutalmente. Aos 15, foi um dos sobreviventes do Massacre da Candelária, episódio em que policiais militares mataram a tiros mais de uma dezena de crianças e adolescentes de rua em 1993, no Centro do Rio. Era usuário de drogas. Não conseguia emprego, não tinha escolaridade, e numa desastrada operação do Bope, o Batalhão de Operações Especiais da PM, para libertar os encarcerados dentro do lotação, acabou matando uma de suas reféns. Por vingança de uma corporação desmoralizada pelo próprio erro, também foi morto por estrangulamento após ter sido preso, dominado e algemado.
Portanto, é evidente, quando se analisa o teor confessional dos depoimentos em Falcão, que se trata de pessoas desestruturadas emocionalmente por completo em suas mais dolorosas variações. O tráfico em suas vidas não se limita a ser uma mera iniciativa a curto prazo para a solução de apertos financeiros, mas a escolha em si define-se também como uma fonte de solução para todos os problemas. Problemas esses que sempre foram alvo de comentários para o entendimento dessa tragédia, mas que ganharam uma interpretação mais abrangente no projeto que teve como objetivo simples dar-lhes uma oportunidade de ‘defesa’. Afinal de contas, ninguém pode ficar imune quando se está exposto a uma rotina sistemática de ódio, abandono e a possibilidade de ser morto a qualquer momento.
Sabe-se, entretanto, que é uma minoria que opta pela bandidagem. Há pais e mães nas comunidades pobres que se esforçam para criar suas famílias na mais absoluta e imaculada atmosfera de dignidade. Mas até sob o filtro das boas intenções há justificativas para se tornar um soldado do tráfico. São crianças e adolescentes que não suportaram mais ver suas mães massacradas por um trabalho indigno, que eram vítimas de surras de padrastos e pais violentos ou abandonados por um, que buscaram no empunho das armas uma resposta à altura para o abuso de poder das forças policias do estado.
Vaquinha para o caixão
– Às vezes eu queria uma blusa de marca, um tênis, sair pra ir ao shopping. Mas como eu vou pedir isso pra minha mãe? Ela não tem dinheiro e já tá com certa idade e eu já tô bem grande – diz um menino encapuzado com uma touca vermelha.
– Estou com 17 anos e nunca tive um aniversário. Meu maior sonho é ir ao circo –, diz outro cabisbaixo e quase chorando.
– Cansei de tomar tapa na cara de polícia, de ser esculachado – diz mais um.
– Vi meu pai ser morto pelos PMs, chamaram ele de bandido, fiquei revoltado e me virei um – conta um quarto.
Os motivos financeiros que levam tantos meninos ao crime como uma tentativa certeira de acesso à alta rentabilidade esbarram numa ironia que os próprios falcões, talvez, desconheçam. Nesse verdadeiro curso de estagiários do narcotráfico, o ofício em proteger a comunidade de todos os inimigos revela-se nada mais do que uma mão-de-obra barata como qualquer outra oportunidade de emprego encontrada no asfalto. Por 14 horas de trabalho ininterruptos, cada falcão ganha 350 reais por mês, fazendo cair por terra todas as especulações sobre ganhos exorbitantes que sempre povoaram o imaginário coletivo da população. Ou como diz o próprio Celso Athayde em uma das muitas entrevistas que deu.
– Quando são enterrados, eles precisam fazer vaquinha pra pagar o caixão. Chefão do tráfico é preso descalço ou de chinelo.
Clássico absoluto
Para os que quiserem atacar o documentário, vai-lhes restar o inócuo recurso de acusar seus realizadores de humanizar bandidos cruéis e implacáveis. Para calar-lhes a boca, serve uma reflexão proferida pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares, no jornal O Globo, que afirmou estarem rompidas ‘as simplificações maniqueístas do contexto, (…) pois eles sempre foram reduzidos à expressão da violência. Agora, eles deixam de ser rótulos, guerreiros do mal, com suas armas, e passam a ser seres contraditórios como nós’.
Para os quiserem encará-lo como uma abordagem inédita enquanto peça de comunicação sobre um tema que até então conhecíamos pela metade, basta lembrar que há uma diferença abissal entre ler relatórios oficiais provenientes de órgãos que controlam a ordem pública estampadas nas páginas da imprensa e assistir com a família, em horário nobre, a uma criança de 13 anos encenando em forma de brincadeira com os amiguinhos todos os procedimentos repugnantes de execução de um X-9 (alcagüete) e, portanto, um inimigo do tráfico.
Nenhuma equipe de jornalismo, nenhuma emissora de TV conseguiu chegar tão longe. O filme na íntegra, que deverá ter a sua versão em DVD com pelo menos 2 horas de imagens, tem previsão de lançamento no Dia da Criança e já se configura como um clássico absoluto do gênero. O vôo de Falcão está apenas começando.
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Jornalista