Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Zelito Viana

‘Mais ou menos uma vez por mês um grupo de amigos almoça em minha casa. Cada um traz a comida e a bebida que quiser. São amigos de mais de 40 anos, que, de alguma maneira, ainda acreditam que o mundo pode ser melhor, mas, sobretudo, têm em comum o senso de humor. Domingo passado, nosso querido Nei Sroulevich foi, como sempre, o primeiro a chegar, todo contente com uma sacola suja de gordura e dois ‘frangos de padaria’ que se revelariam, mais tarde, particularmente deliciosos. Era 1h30 da tarde.

Conversamos animadamente , ele, feliz com o artigo dele que acabara de ser publicado no JB, esculhambando o Jarbas Passarinho, que se atreveu a falar mal do Fidel, coisa que para o Nei era a condenação à queima eterna dos infernos. Os convidados foram chegando e elogiando o artigo, sempre com bom humor, e tudo fluía como sempre extremamente agradável. Às 4 da tarde, como bons vascaínos, eu, Nei, meu filho Marcos, Milton Temer e Milton Coelho da Graça nos aboletamos em frente da televisão.

No segundo pênalti, perdido pelo Valdir, o Nei não agüentou e saiu da sala. Não viu o segundo gol do Vasco. Temer foi avisá-lo do gol e o encontrou meio aflito, andando na casa de um lado para o outro. Vera, minha mulher, ficou preocupada e deu um pedaço de goiabada para ele e ofereceu o ar condicionado do quarto. Ele já suava muito. Não aceitou e foi para o carro. Milton se ofereceu para levá-lo para casa, ele não quis, disse que estava tudo bem, e morreu duas horas depois.

Confesso, sinceramente, que até hoje não entendi, não me conformo e não acredito que isso tudo tenha acontecido nas nossas barbas. Quando começou a morte do Nei? Será que ele já chegou na minha casa condenado? Será possível que a morte chegue nessa velocidade sem que ninguém se dê conta? Éramos mais de 20 pessoas. E ele? Será que sabia? Diante de um acontecimento como esse que lição podemos tirar? Desde lá, perguntas e respostas rolam sem parar na minha cabeça, mas nenhuma tem importância diante do fato consumado. Perdemos, para sempre, o nosso grande amigo e companheiro Ney Sroulevich. As palavras que me vêm quando penso nele são sempre as mesmas : generosidade e festa.

Assim era o Nei. Capaz de qualquer sacrifício para um ato generoso com os amigos e com a família e uma festa permanente. Contava sempre histórias mirabolantes que beiravam o delírio, mas que mais tarde se revelavam verdadeiras. Numa dessas reuniões, foi capaz de recitar de cor uma prova de estatística feita em versos por Milton Coelho da Graça que nem o próprio se lembrava. Uma vez eu disse a ele que meu sonho era o de fazer um filme com um produtor cem o qual eu não me preocupasse com nada, a não ser com dirigir o filme. Na primeira ocasião que teve, me convidou para dirigir o filme dos sonhos dele, sobre a vida do Juscelino, no qual ele sempre insistia que estava realizando um sonho meu.

O prazer dele receber gente em casa é inesquecível para todos os que tiveram esse privilégio. Sua alegria de viver era tanta que superava os fatores de risco: gordo, diabético, com colesterol alto, sedentário e teimoso. Belo dia não resistiu. Felizmente, para ele, que não sofreu a agonia da morte lenta, mas brutal e estúpida para nós que ficamos. Quem sabe ele apenas adquiriu nova profissão? Para quem foi estudante profissional, jornalista, produtor de cinema, representante comercial, dirigente cultural, candidato a deputado, empresário, correspondente internacional, colunista – acho que ele simplesmente resolveu virar anjo da guarda da Claudia da Helena e do Daniel.’



Tutty Vasques

‘Cidadão Sroulevich’, copyright No Mínimo (http://nominimo.ibest.com.br), 20/03/04

‘‘O Nei ia adorar ver isso aqui’, dizia Claudia Furiatti aos amigos que chegavam ao velório de seu marido. Súbita como foi, a morte de Nei Sroulevich não afastava da sinagoga a sensação de que o falecido foi ali e já volta. A viúva distraía-se com o quebra-cabeça da saudade: ‘Cada um de vocês é um pedacinho dele’. Nei daria um puzzle e tanto. Era um sujeito enorme, muito maior que tudo que fez como jornalista e produtor de cinema, aí incluídas as memoráveis edições do FestRio no Hotel Nacional e a antológica foto em preto e branco de Nara Leão sob nevasca parisiense, capa de um álbum duplo da cantora. A grandeza maior de Nei Sroulevich sempre foi a figura humana que imprimiu em sua vida.

Tinha barba, barriga e charuto, mas não era um comunista comum. Eu, pelo menos, conheci poucos que, sem pudor ou contradição, permitiam-se relacionamento tão libidinoso com a maldita sociedade de consumo. Nei era consumista de carteirinha. Sabia o que é bom, comprava do melhor, gastava sem culpa, divertia-se com dinheiro. Certa vez, quase 20 anos atrás, me levou do aeroporto direto a uma delicatessen em Genebra para quebrarmos o jejum de uma viagem de 15 dias a Moscou – choque cultural que, para quem gosta de comer, pode até ser fatal. Mandou descer das prateleiras toda iguaria que ao alcance dos olhos aguasse a boca e, resumo da ópera, comemos até o limite do desmaio, celebrando o reencontro com o paladar da gastronomia capitalista. Viva a Suíça!

Rio-Zurique-Moscou-Leningrado-Genebra-Paris-Rio – foi minha primeira viagem ao exterior. Eu era um dos jornalistas convidados do Festival de Cinema de Moscou por indicação direta de Nei Sroulevich. O cara mandava. No tempo em que Gorbatchov era só promessa de mudança na União Soviética comia-se por lá o pão que o diabo amassou, mas jantamos como czares na noite em que os russos homenagearam o camarada Sroulevich. Aprendemos com eles a beber vodka à moda moscovita e deu no que deu: voltamos para o hotel – éramos uns 15 brasileiros – ensaiando uma formação básica de bloco carnavalesco pelas ruas de Moscou. Nei ia na frente puxando o samba: ‘Chegou a turma do funil, todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto…’.

Nei dormia no cinema. Com cinco, dez minutos de filme, começava a dar cabeçadas e quem estivesse a seu lado precisava cutucá-lo para reprimir-lhe o ronco. Ao fim da sessão, entretanto, seria capaz de debater sobre o que não viu com jornalistas. Não se apertava em saia justa: dispunha de um métoco secreto de construção de comentários cinéfilos de lógica irrefutável. Era um artista. Não importa se em Moscou ou em Paris, estava sempre à vontade em cena, sentia-se em casa em qualquer lugar do mundo. Quando chegamos à França, naquele verão de 1985, quase mata os donos do Hotel Du Levant de alegria ao se anunciar na recepção com a intimidade de alguém da família que chega de surpresa. Nei morou ali, no coração do Cartier Latin, no tempo em que chefiou a sucursal da Manchete em Paris, lá pelo final dos conturbados anos 60. ‘Ele me escondia no quarto dele quando cheguei ao exílio’, me dizia Cacá Diegues no pátio da sinagoga.

Nei produziu Cacá (Joanna Francesa), Rui Guerra (A Queda), Miguelzinho Farias (O Homem Célebre), Ana Carolina (Getúlio Vargas), mas um tasco imenso de sua biografia só tem registro na memória afetiva de seus amigos. Imagino que em Cuba tenham histórias incríveis para contar sobre o companheiro Sroulevich. Nei era uma celebridade na ilha. Ninguém me disse, eu vi. Fui na bagagem dele ao Festival de Havana em 1986 e testemunhei a festa que lhe faziam cubanos de todas as patentes. A admiração era recíproca. Nei vendeu charutos no Brasil, agenciou turismo para Havana, foi advogado de defesa de Fidel Castro nas páginas de opinião dos jornais brasileiros, mas não se deve lembrar dele depois de morto só pelas coisas que fez em vida.

Como o próprio apelido (Kid Megalô) denuncia, Nei Sroulevich gozava da prerrogativa do delírio. Planos mirabolantes eram sua especialidade. O FestRio emplacou, mas não ilustra melhor a história do personagem que um bom punhado de idéias fantásticas, fascinantes e impraticáveis levadas a sério até às últimas conseqüências. O país ideal, o filme genial, o grande lance, tinha sempre alguma coisa assim, definitiva, para oferecer aos amigos, além de uísque, é claro. O cara era a generosidade em pessoa.

Nei e Cláudia jantaram lá em casa há uns dois anos e, como fazia muito tempo que não nos víamos, passamos os anos 80 a limpo. Agora que ele morreu, vou guardar para sempre a imagem daquela montanha de alegria que era o Nei naquela época. Acho que é esse o pedacinho dele que me coube representar.’



PERFIL / AUGUSTO MÁRIO FERREIRA
Eduardo Ribeiro

‘Uma lição de vida’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 19/03/04

‘Mais do que atarefado na tarde da última quinta-feira, atordoado com as inúmeras tarefas sob os meus cuidados (maior do que minha capacidade física e humana de realizá-las – ao menos no que seria o horário normal de expediente), fui abruptamente interrompido por nossa secretária, na Mega Brasil – a Ester Moreira Arabicano -, perguntando-me se eu estava esperando alguém. Eram mais ou menos cinco e meia da tarde. Consultei em frações de segundos meus apontamentos memoriais apenas para me certificar de que não havia efetivamente marcado qualquer compromisso para aquela hora. E já ia ficando mal humorado até ouvir o nome por ela pronunciado: ‘É um senhor e pelo que entendi o nome dele é Augusto alguma coisa… acho que Augusto Mário’. Nisso, ainda incrédulo, olhei à porta, e lá vinha ele, com as dificuldades naturais de locomoção para quem já sofreu dois derrames, em direção à minha sala.

Sim, estava diante de mim, às 17h35 desta quinta-feira (18/3), o mestre Augusto Mário Ferreira, profissional dos mais dignos que já conheci, e que há anos luta com um denodo impressionante contra a doença que lhe ceifou quase todos os movimentos do seu lado bom – fisicamente falando, é claro -, o lado destro.

Veio sozinho, de ônibus, duas conduções, saindo de sua casa, em Cotia, diretamente para a Vila Mariana. E voltou, do mesmo modo. E o que é mais impressionante: ele já havia feito isso dias antes, sem ter me encontrado. Perdeu a viagem, mas não a determinação e a esperança.

Singelamente me entregou o exemplar de ‘O Enclave Ypsilon’, livro de contos que começou a escrever antes da doença, e que teimosamente insistiu em concluir depois dela, numa prova de superação que teve como prêmio maior a própria vida. Se os primeiros contos escreveu no teclado com as duas mãos, os últimos o fez só com a canhota, de próprio punho – e com a mesma lucidez e inteligência de antes.

A obra saiu pela Editora Oficina do Livro e dela participam algumas personalidades do jornalismo. A orelha foi escrita por José Francisco Lopes de Miranda Leão (‘coletânea de contos que se lê de uma sentada, traz, sem embargo, rica amostragem do ecletismo desse Grapiúna, exibindo desde sua mente especulativa até sua visão de cronista galhofeiro, passando por um anedotário que parece leve sem porém ser ligeiro’); a apresentação por José Nêumanne (‘Exportado da zona do cacau para as bandas de Piratininga, esse vivente se especializou em três ofícios de risco – a publicidade, em que se bacharelou de canudo e anel; o jornalismo, ao qual dedicou devota prática; e a capoeira, cujas manhas e ademanes domina como raros. Pois foi o capoeirista traiçoeiro, aquele sujeito que balança até fazer o oponente desabar quando este menos espera, ou seja o militante dessa arte na fronteira entre a luta corporal e a dança sensual, quem escreveu os contos reunidos neste volume’); e o prefácio por Cândido Rangel Dinamarco (‘Saio da leitura do primeiro de seus contos com um vigor novo, com o renovado desejo de identificar o Velho Sábio e saber distingui-lo dos farsantes, com a esperança de, transpondo a Muralha vítrea das ilusões, chegar à boa Trilha da Sabedoria Divina, onde o coração de cada um é um verdadeiro templo às virtudes e onde os espíritos são capazes de superar as aparências de rituais enganadores’). Na quarta capa, Ignácio de Loyola Brandão cunha: ‘Voz nova. Inventivo, delirante, imaginativo, insano, verdadeiro, escorregadio. E ele vai nos mostrando que por baixo do repórter estava o contista de primeira, que apenas esperou amadurecer para se mostrar. Nunca foi afoito, nem mesmo na literatura. Soube dar tempo para chegar com um livro exato, preciso. Retrato de nosso tempo. Porque esse livro é uma metáfora dos dias que vivemos.’

Ao dar em minhas mãos o exemplar de ‘O Enclave Ypsilon’, vi seus olhos brilharem de forma fulgurante, e de seus lábios nasceu um enorme e cativante sorriso, numa cena que jamais esquecerei, tal a espontaneidade, a generosidade, a abnegação e o desejo de viver que traziam consigo.

Passeando pelas páginas do livro-conto, me lembrei da tarde em que fui visitá-lo, em Cotia, em companhia da parceira e irmã Mara Ribeiro, que apesar do sobrenome não tem qualquer parentesco comigo (ao menos visível). Foi um momento de muita alegria, de emoção redobrada. Eu, por encontrar, anos depois, um profissional a quem admirava demais, apesar da pouca convivência que tivemos. E ele, por receber a visita de dois caboclos da mesma raça (quero dizer jornalistas), num momento em que o que ele mais precisava, mesmo, era de calor humano, da presença dos amigos, de ver que a vida se renovava dia a dia, e que ele podia, sim, e devia, ter esperanças em dias melhores. Bastava-lhe voltar a fazer algumas coisas banais, como pegar um ônibus, visitar um amigo, escrever algumas palavras. Vi o carinho familiar com que é cercado e que foi fundamental para sua recuperação e todo o seu esforço em retribuir a esse carinho, tentando vencer (ou ao menos driblar) a doença. Eu estava diante de uma daquelas lições que jamais escola alguma ensinou. E saí de lá gratificado tanto por reencontrá-lo, como por ver que tanto esforço não fora em vão.

Acordei dos devaneios, num átimo, com Augusto Mário pedindo uma caneta para autografar o livro. Acompanhei com redobrada atenção seus movimentos escrevendo, letra por letra, com a canhota que o salvou da direita, a seguinte dedicatória: ‘Para Eduardo Ribeiro com as saudades do tempo passado’. Ao final, sapecou aquela assinatura que só vemos em talões de cheque ou documentos oficiais, para registro em cartório. Impressionado, o perguntei: Augusto, por acaso essa assinatura é a mesma que você fazia, anteriormente, com a mão direita, antes de ficar doente? Ele aquiesceu com a cabeça e disse um sim, cheio de satisfação, com os lábios, ao mesmo tempo em que sua mão esquerda foi buscar dentro do envelope que trazia consigo a velha carteira de jornalista, do nosso Sindicato. Ao exibi-la, com dupla satisfação, apontou para ela, a assinatura: impressionantemente igual. Passaria até com certa tranqüilidade por qualquer cartório, no reconhecimento de firma.

Foi, como pode-se notar, uma sucessão de emoções de parte a parte. Esqueci de meus afazeres, de minha agenda, dos telefonemas, das encrencas do dia-a-dia, pra ficar ali, proseando com mestre Augusto Mário Ferreira.

Me contou coisas que eu sabia e outras tantas que desconhecia, como, por exemplo, que foi dele uma das primeiras empresas de assessoria de imprensa do mercado, a terceira a ser fundada (meados dos anos 60 – ou seria 70?), e que acabou sendo fechada quase uma década depois porque o colega que a tocava suicidou-se ao descobrir que era traído pela mulher. Contou dos tempos em que dirigiu a sucursal do jornal O Globo, em São Paulo, quando, semanalmente, despachava no Rio de Janeiro com o jornalista Roberto Marinho (foram 12 anos de jornal).

Não deu tempo de falar da Folha de S.Paulo, do Jornal do Brasil, da Voz de Itabuna (onde começou), da Última Hora, da revista Senhor (fase antiga), das aulas que deu na FAAP, Cásper Líbero e Ideal (nesta lecionou Direito, bacharel que era na matéria, pela escola do Largo do São Francisco). Faltou também falarmos de seus outros livros, ‘Sobreviventes do Ônix’ (romance) e ‘Bosque de Eucaliptos’ (teatro).

Mas conseguimos falar da experiência de ter lançado a Gazeta de Moema, jornal de bairro que foi, durante o período em que lá esteve (sete meses), reconhecido como um dos melhores jornais de bairro de São Paulo; de seu tempo como assessor de imprensa do Banco de Tóquio; do curso de Redação Jornalística que ia dar para a nossa empresa, quando foi surpreendido pelo AVC que mudaria o curso de sua vida…

Quando nos demos conta, eram já 19h e ele próprio pôs fim à conversa: ‘a visita já se estendeu demais; está na hora de ir embora’. Eu ficaria ali, outras muitas horas, ouvindo as histórias, aprendendo com ele, mas já estava escuro, e ele, por opção, voltaria de ônibus para casa, e a família – caso demorasse demais – ficaria preocupada.

Concordei em liberá-lo, não sem antes arrancar a promessa de novos encontros – aqui mesmo na Vila Mariana, em Cotia, ou pelos caminhos da vida.

Agora, com sua benção, reproduzo o último dos contos de ‘O Enclave Ypsilon’, curtinho mas delicioso:

‘- Faz lombo, filho da peste, para num te cortar os encaixo.

Segurando pelos cabelos, obrigou o outro a ajoelhar-se e começou a vergastar suas costas com a chapa do facão de vinte polegadas.

Plein. Oi, gemeu; plein. Oi, gemeu mais alto.

– Larga o homem – ordenou o xereta, da janela do sobrado.

– Que tu tem com isso, seu xibungo, quer apanhar no lugar dele?

Tirou o papo-amarelo de detrás do armário, enfiou três balas serradas e disparou nos dois vultos, no centro da praça enluarada. Tum. Pareceu um tiro de canhão, na noite silenciosa. Tum. Tum. Uma das balas assobiou fino na calçada de pedra.

– Agora vou acertar no teu juízo, valentão de merda.

Enfiou pela coronha mais três balas serradas, nem começou a disparar. O do facão correu para um lado; o ajoelhado, que fazia lombo, para o outro. A praça aquietou-se, sem barulho, nem vento. Rostos assustados apareceram nas casas. Fechou sua janela, guardou a arma. Desceu para a rua, de pijama, para ouvir a versão dos despertados pelo tiroteio, quase à meia-noite. Escutou histórias fantásticas. Detalhadas como as verossímeis inverdades. Prendeu o riso e voltou para casa, matutando sobre os muitos mentirosos de sua cidade.’

Por Augusto Mário Ferreira’



PALAST NO BRASIL
Argemiro Ferreira

‘A melhor democracia que o dinheiro pode comprar’, copyright Tribuna da Imprensa, 20/03/04

‘Finalmente uma editora brasileira, a excelente W11, lança a tradução do livro ‘A melhor democracia que o dinheiro pode comprar’, do americano Greg Palast. Se dependesse desse jornalista vulcânico, dono de biografia fascinante, o desfecho da eleição de 2000 seria outro. Além de provar o roubo de votos na Flórida que elegeu Bush, ele descobriu ainda que a equipe de Al Gore fez tudo errado.

Houve referências antes, nesta coluna, a Palast e seu livro, que se tornou ‘best-seller’ nos EUA por uma razão simples: conta a verdade que a ‘mainstream press’, aí chamada de grande imprensa, dos jornalões e impérios de mídia, escondia ou tinha o cuidado de disfarçar. Palast tem também seu website, que recomendo, onde estão textos e reportagens de TV só veiculados em Londres: www.gregpalast.com.

Esse é o fato insólito, que depõe contra a mídia dos EUA: muita gente pensa que Palast é um inglês maluco obstinado em difamar Bush e os EUA. Nada disso. É bem americano. Só que a grande mídia daqui, parte de impérios envolvidos até em produção de armas, odeia o estilo insolente dele, a denunciar crimes da globalização econômica, fraudes das corporações e mentiras usadas para fabricar a guerra do Iraque.

Da escola de Chicago para o jornal

A história pessoal de Palast ajuda a explicar o estilo. Ele nasceu no lado nordeste do San Fernando Valley, parte deteriorada de Los Angeles. O pai vendia móveis, a mãe trabalhava na cafeteria da escola. Cresceu entre uma usina de energia e um depósito de lixo. Como a maioria daqueles de origem semelhante, não teve como fugir da luta no Vietnã. Tinha outras prioridades, mas não sobrenomes como Bush e Cheney.

Para ele, a guerra teve uma vantagem. Como sobreviveu, faturou benefícios dados a veteranos. Pôde fazer curso universitário. Seu MBA (administração de empresas) foi na Universidade de Chicago, do oráculo do conservadorismo, Milton Friedman, inspirador dos excessos neoliberais de Thatcher e seu discípulo Reagan. A escola de Chicago permitiu que ele visse melhor o outro lado daquilo que se ensina ali.

Ainda na universidade, traiu as teorias de Friedman: ligou-se a sindicatos, aos quais servia em missões secretas, de investigação. Descobriu verdades que as corporações (e seus executivos ladrões) escondem e os líderes sindicais tentam a todo custo provar. Com isso desenvolveu a vocação para a reportagem investigativa. Fazia artigos de opinião em jornais e dava pistas e idéias a jornalistas para reportagens.

Frustrado com o mau aproveitamento, devido à inépcia ou pouco apetite da mídia pela controvérsia, Palast resolveu tornar-se jornalista – e em tempo integral. Para ele, o jornalismo da grande mídia burocratizou-se. Acomodados e sem a inquietação e o ceticismo que aguçam a curiosidade e geram o questionamento, os repórteres acostumaram-se a repetir ‘releases’ ou reproduzir o que ouvem em coletivas.

O expurgo étnico que elegeu Bush

Nesse quadro pouco inspirado, jornalistas deixaram de perceber as questões críticas da eleição da Flórida – que tão pouco interessaram os editores, nas redações. A mídia se autolimitava, cobrindo superficialmente, sem imaginação ou ousadia, o dia-a-dia da crise pós-eleitoral. Palast ousou fazer as perguntas inconvenientes, mas pertinentes. E devassou a realidade chocante, escondida dos americanos. Como fazia reportagens para a BBC e jornais de Londres (‘Observer’, ‘Guardian’), pôde desmascarar a fraude.

A obsessão de Al Gore e dos jornais americanos era recontar votos de condados específicos, garimpar algumas centenas e tirar a diferença de 537 dada ao mano pelo governador Jeb Bush. Mas Palast foi ao veio maior: descobriu que Gore fora garfado não em centenas, mas em milhares de votos (uns 60 mil).

O conluio de Jeb Bush com a secretária de Estado Katherine Harris (co-presidente da campanha presidencial de Bush) e a empresa ChoicePoint-DBT, com a ajudazinha do estado do Texas, montara gigantesca operação eletrônica de expurgo étnico antes da eleição. 90% dos eleitores negros e de áreas pobres votavam em Gore. A operação diabólica expurgou em massa esses eleitores das listas de votantes. Eletronicamente.

Os crimes e fraudes da globalização

Por que a gente de Al Gore nada fez? Em primeiro lugar, sua campanha arrogante ignorou as denúncias por virem de negros tidos como suspeitos de terem cumprido pena. Palast foi atrás dos dados reais e achou provas da safadeza. Provas que foram vistas pelos ingleses no ‘Observer’ e na BBC. Os americanos só ficaram sabendo muito depois, quando ‘The Nation’ e ‘Harper’s’ publicaram reportagens dele.

Também Michael Moore falou do assunto em ‘Estúpido homem branco’. Chocado com a descoberta de Palast, publicou os dados no seu livro. Os dois autores acabariam juntos na lista de ‘best-sellers’ do ‘New York Times’, mostrando que o leitor americano quer conhecer aquilo que sua mídia esconde. Espero que estejam de novo juntos também na lista dos livros mais vendidos no Brasil.

Até porque a fraude eleitoral da Flórida é apenas um dos capítulos de ‘A melhor democracia que o dinheiro pode comprar’. Até os escândalos de FHC estão lá. O subtítulo do livro na edição popular dos EUA, da Plume-Penguin, é ‘Um repórter investigativo expõe a verdade sobre a globalização, os ladrões corporativos e os fraudadores da alta finança’. Faltou citar a quadrilha do FMI, Banco Mundial e BID, a serviço do Tesouro americano.’