Neste mês de agosto, a notícia sobre uma criança de dois anos que desapareceu na Feira de Itapuã, quando estava em companhia do padrinho, Rafael Pinheiro, com quem morava há quatro meses, surgiu inicialmente nas redes sociais e, a partir do dia 15, nos jornais de grande circulação no estado da Bahia. O caso chamou atenção pelo fato de que a criança sofria de problemas de saúde, como diabetes e intolerância à lactose, o que aumentou a comoção e urgência por sua resolução.
Itapuã é muito conhecida pelos versos de “tarde em Itapuã”, canção de Vinícius de Moraes que ressalta a beleza da paisagem litorânea numa tarde indolente. A face pouco conhecida de Itapuã é do bairro que é parte do processo de periferização da pobreza em Salvador, onde territórios abastados e bem servidos por infraestrutura urbana coexistem com os territórios herdeiros da pobreza da cidade, marcados pela precariedade urbana e de serviços públicos.
É nesse cenário que se desenvolve o caso do menino desaparecido, noticiado diariamente até o seu desfecho, em 19/08, quando o padrinho confessou ter abandonado o corpo do menino num terreno baldio depois que a criança faleceu após ter se alimentado. A partir desse momento, os jornais locais iniciaram uma série de reportagens sobre o caso, que ressaltavam questões relacionadas ao cotidiano da mãe – desde o fato de ter deixado a criança morando com o padrinho – até a acusação de que seria usuária de drogas. A cobertura segue com informações ambíguas, com indicação, em alguns momentos, de que o padrinho teria ocultado o corpo e, em outros, de que teria matado a criança.
A confissão culmina com um tumulto e tentativa de linchamento do acusado, pela população, durante a sua permanência na delegacia. “Mata ele”, gritavam os presentes em frente à 12ª delegacia de polícia de Itapuã, o que, inclusive, adiou a transferência de Rafael para o presídio. Pesava contra ele o fato de ter participado de passeata e campanhas virtuais de busca ao menino desaparecido, fato que foi ressaltado principalmente nos vários blogs especializados em notícias policiais da Bahia.
A cobertura jornalística oculta questões cruciais
No ápice da cobertura, no dia 21/08, o jornal A Tarde apresentou uma entrevista na qual a avó materna faz uma série de acusações e responsabiliza a mãe da criança, sob a manchete: “‘Ela já sabia que o menino tava morto’, diz avó sobre filha”. Nas entrelinhas, evidências de abandono, por parte do Estado, da mãe e da criança: com 18 anos, a mãe sustentava a criança de dois anos, de pai desconhecido, sozinha. Foi despejada do local onde morava e passou a morar nos fundos da casa do padrinho da criança, segundo ele, “ao relento, por não ter para onde ir.” A matéria deixa de fora a motivação da mudança do menino para a casa do padrinho: a mãe passou a trabalhar à noite e só tinha acesso ao filho num único dia da semana, terça-feira, seu dia de folga.
Essa história com final desolador reúne elementos importantes para entender o estágio atual da sociedade brasileira quanto à sua percepção sobre a realidade social: a criminalização da pobreza dá o tom da cobertura jornalística das notícias policiais, alimenta e é alimentada pela necessidade cega de punição dos envolvidos, ao reforçar questões e motivações individuais sobre os fatos. Mais do que má-fé ou desinformação, essa cobertura revela um fenômeno que vem se construindo desde o final do século 20: o avanço do Estado penal. De orientação fortemente punitiva, a estratégia de penalização serve, de acordo com Loïc Wacquant, a duas finalidades: no plano real, para conter a ameaça representada pelos pobres num contexto de completa insegurança social e, no plano simbólico, para reforçar a presença do Estado no campo penal, um raciocínio individualista e repressivo que vem ao encontro da desconstrução do Estado social.
Se esse raciocínio pauta há algumas décadas a cobertura policial no Brasil, com o avanço das redes sociais ele ganha uma nova e assombrosa feição: a do ódio em massa, que conduz a julgamentos sumários e agressões e linchamentos cada vez mais frequentes. Não por acaso, as últimas notícias sobre o caso do menino de Itapuã dão conta que o padrinho recebeu ameaças que foram gravadas num vídeo que circula em redes sociais, além de uma foto que apresentava uma cena de novela global como prova da morte de Rafael no presídio. Os rumores levaram a Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização da Bahia a desmentir a morte de Rafael, em nota que inclui notícias sobre o seu estado atual.
Assim, uma população raivosa mediante a morte de uma criança que vivia em situação de completa insegurança social credita aos diretamente envolvidos toda a responsabilidade e culpa pelo desfecho trágico. Alheia à complexa teia de negação de direitos e desproteção social da família, essa população canaliza toda a sua indignação para a figura de um único indivíduo, condenado à condição de monstro, uma desumanização que permite e justifica agressões e tentativas de linchamento. A cobertura jornalística, ao reforçar esse padrão de pensamento coletivo, contribui para reforçar o avanço do Estado penal e oculta questões cruciais, que poderiam explicitar que há outros meninos, desaparecidos ou não, vivendo sob risco nos territórios herdeiros da pobreza em Salvador, a quem a lua de Itapuã não oferece seus braços morenos.
Bibliografia
SOARES, Antonio Mateus. “Cidade revelada: pobreza urbana em Salvador-BA”. Geografias (UFMG), v. 5, n.1, jan-jun 2009.
WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [a onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
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Regina Célia Borges de Lucena é professora adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia