Na edição de sexta-feira (29/01) do BDSP (TV Globo), o apresentador Rodrigo Bocardi entrevistou o secretário de Educação de São Paulo, Rossieli Soares, sobre o retorno às aulas presenciais no estado, previsto para o dia 08 de fevereiro, seguindo as normativas do Plano São Paulo.
Liminar concedida no final da tarde do dia anterior, em ação ajuizada por entidades sindicais do professorado, suspendia esse retorno em razão do agravamento da pandemia e em nome da proteção ao direito à vida.
Sobre o teor da decisão pouco se falou, pois o Estado ainda não havia sido notificado, segundo o secretário. Na sexta-feira mesmo, atendendo a recurso, a liminar foi derrubada pelo presidente do TJ/SP Pinheiro Franco.
O embate está posto, diante do recrudescimento da pandemia, com a classificação na fase vermelha da maioria das regiões do estado, até então, e diante de muitas incertezas. Oficialmente o governo paulista garante que as escolas estão preparadas e adaptadas para a reabertura.
Se há consenso sobre a importância da educação e sobre os impactos educacionais devido a crise sanitária de Covid-19, que tornou ainda mais visíveis as desigualdades e os perenes problemas estruturais no país, não deixa de haver polêmica, justamente em razão da insegurança causada pelo aumento exponencial dos contágios, pela falta de condições de infraestrutura de muitas escolas da rede e pela falta de segurança mínima para os profissionais de educação.
O secretário alega que foram adquiridos e distribuídos insumos destinados à proteção de alunos e servidores, recursos por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola de SP para manutenção e conservação das unidades escolares, além de estabelecidos protocolos de segurança e de procedimentos em caso de problemas de contágios.
Até aí os embates giram em torno dos discursos oficiais, das medidas protocolares e alegações pautadas, segundo o governo paulista, nas orientações do Centro de Contingência do Coronavírus, portanto na ciência, como costuma ressaltar o governador. Ao menos há entrevistas coletivas diárias com a publicização das estratégias e medidas do Plano São Paulo. Não faltam farpas e rusgas com o governo federal, cujas ações vão na contramão do combate ao coronavírus.
O secretário de Educação, na referida entrevista, perguntado sobre a possibilidade de inclusão dos professores nos grupos prioritários para a imunização, criticou a falta de planejamento do Brasil (além da briga diplomática com a China) para a compra de vacinas, o que impossibilitaria a vacinação dos profissionais da educação, embora sejam considerados grupo prioritário.
Ao que tudo indica, o governo parece assumir esse risco, o de retomar as aulas diante de um cenário de incertezas, de aumento de contágios, uma vez que a vacinação segue um cronograma ainda lento, sem uma campanha efetiva de imunização, diga-se, atribuição do governo federal, cujas estratégias (ou falta delas) têm potencializado a pandemia.
De qualquer forma, é preciso questionar até que ponto as escolas da rede estadual — redes municipais e até particulares podem ser incluídas — estão realmente preparadas e o que significa para o governo paulista assumir esse ônus, diante do recrudescimento da pandemia, da possibilidade de circulação de variantes do coronavírus. Praticamente há duas semanas muitas regiões do estado seguem na fase vermelha e laranja, as mais restritivas. Há cidades no interior paulista em que os serviços de saúde entraram em colapso.
Costuma-se elogiar as gestões técnicas de governos, como um traço de administração empresarial no qual é possível identificar a prevalência da lógica neoliberal. Não que técnicos sejam dispensáveis a um governo — o desmantelamento técnico do Ministério da Saúde tem demonstrado o quanto isso é nocivo. Mas essa lógica (imediatista e que responsabiliza ou culpabiliza tão somente o indivíduo) se choca com a da administração pública, quando responde a interesses de determinados setores ou demandas particulares — o componente econômico está presente e se faz sentir de inúmeras maneiras, ainda que o governo estadual alegue não ceder a pressões.
Nesse contexto, talvez seja preciso dar um passo a mais no entendimento do que significa governar com um aparato técnico sem prescindir da responsabilidade de ações políticas, principalmente de proteção da população e do próprio funcionalismo público, por exemplo, indispensável para o funcionamento do Estado.
A pandemia demonstrou a necessidade de investimentos nos serviços públicos, o que contraria o discurso neoliberal de privatizações, de enxugamento e cortes de recursos, seja em qualquer esfera do poder público, como se isso pudesse trazer melhorias para serviços já precários, em razão justamente dessas práticas contracionistas.
Além disso, seria preciso avançar na compreensão e alcance de conceitos ligados à pandemia, ou sindemia, segundo especialistas, para implementar ações políticas que reforcem as medidas de proteção à vida, de reorganização da vida em sociedade.
Essas ações passam pelo entendimento de que se trata de uma enfermidade política, no sentido de que foi produzida pelo modo de vida e organização da polis. Naturalizá-la é restringi-la a um problema clínico, abrindo também espaço para o fatalismo, senão o oportunismo dos que não querem responsabilizar-se pela inércia ou por tantas mortes evitáveis. Isso demanda políticas públicas de ampla gama, que podem contrariar, no entanto, interesses econômicos.
O que isso tem a ver com a (possível) volta às aulas? Não se pode desconsiderar estruturas negligenciadas por muitos anos, carências não só educacionais, mas de materiais, de precarização do trabalho dos professores, de exíguo investimento em tecnologias etc. As escolas reproduzem essas estruturas de desigualdade da sociedade. E os investimentos feitos ainda são incipientes para atender as adequações em infraestrutura, garantindo acesso a recursos digitais, além de mudanças pedagógicas.
Esses investimentos deveriam ir na direção de proteção da sociedade, alunos, comunidade escolar, professores e profissionais da educação, a fim de garantir condições de trabalho, com dignidade e segurança destes últimos, não criminalizando-os, por exemplo, como o fez levianamente o secretário de Educação, aludindo ao final da entrevista que professores estariam resistindo ao retorno às aulas, mas frequentando colônias de férias de um dos sindicatos que moveu a ação.
Parece que o secretário confunde e contraria o próprio discurso — ainda mais quando tenta justificar sua crítica à categoria atrelando-a a uma agenda político-partidária das entidades sindicais, uma desculpa sempre à mão. Se a luta é pela “preservação de vidas”, que o seja também pela vida dos professores, dos servidores públicos, da comunidade escolar, promovendo um debate franco.
Ademais, se colônias de férias estavam funcionando no litoral paulista, presume-se que autorizadas pelas diretrizes governamentais do Plano São Paulo. Perguntado pelo entrevistador onde é a referida colônia e se professores estavam lá, o secretário não soube precisar a localização da praia e limitou-se a dizer que a colônia estava aberta, mantendo funcionários. Oras, secretário.
O jornalismo talvez precise de um pouco mais de assertividade também, tanto em inquirir quanto em propiciar que as contradições discursivas venham à tona, que as alegações oficiais não se restrinjam aos comunicados protocolares e oficialescos, que novos conceitos circulem e contribuam para a compreensão desse momento crucial de nossa história.
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Afonso Caramano é escritor, autor do livro de contos, Ao contrário, um caminho (11 Editora, Jaú/SP – 2015).