Considerada uma das legislações mais avançadas do mundo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069/90, completa 30 anos neste 13 de julho. No histórico de seu desenvolvimento, observamos a transformação da visão sobre as crianças e os adolescentes em termos legais.
Se antes, na mira do Código de Menores, baseado na doutrina da situação irregular, o olhar para esse público era direcionado apenas àqueles que tinham desvio de conduta ou eram considerados “delinquentes” e menores carentes, com a doutrina da proteção integral, que dá sustentação ao ECA, crianças e adolescentes passam a ser vistos como sujeitos de direitos. Todos e todas são foco do estatuto, sem visões assistencialistas e punitivistas.
Importante destacar que o ECA surge a partir de grandes mobilizações sociais alinhadas a perspectivas internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos das Crianças da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1959, e a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, das quais o Brasil é signatário. Durante a Assembleia Nacional Constituinte, formou-se um grupo de trabalho — com intensa participação popular — para a discussão dos direitos das crianças e dos adolescentes, e que acabou conseguindo inserir os artigos 227 e 228 da Constituição Federal, promulgada em 1988.
Temos aí a síntese dos princípios da doutrina da proteção integral e a base para a criação do ECA: a universalidade de sua abrangência no entendimento de que todos são titulares de direitos garantidos pela família, pela sociedade e pelo Estado. E assim como na redação dos dois artigos presentes na Constituição cidadã, a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, na superação do entulho jurídico que tratava as questões da infância e adolescência, foi possível graças à articulação de muitas vozes em um processo de conquistas e resistências que acompanha os 30 anos deste dispositivo legal.
Nesta jornada, ainda que um grande número de modificações tenha sido incorporado ao Estatuto, o cerne de sua estrutura e de seu propósito permanecem, assim como a sua importância. Há muitos desafios a serem enfrentados, sobretudo no contexto atual de retrocessos de direitos e de acentuação da desigualdade social, que ainda tendem a se intensificar com a pandemia do novo coronavírus.
Alguns deles se evidenciam nas transformações sociais e culturais que vivenciamos ao longo das últimas décadas, especialmente quando olhamos para o universo comunicacional. As crianças e adolescentes dos quais o ECA fala nos anos 1990 tinham acesso a aparatos tecnológicos e interagiam com os conteúdos midiáticos de diferentes maneiras, em comparação ao que observamos hoje. Vivemos em um ecossistema comunicacional que altera significativamente nossos modos de ser, de estar, de agir e de perceber o mundo. Por isso a importância de nos atentarmos ainda mais para a cidadania comunicativa das crianças, dos adolescentes e dos jovens brasileiros para além de uma perspectiva estritamente moralista e protecionista e sem perdermos nosso viés crítico.
A questão midiática e comunicacional é abordada no ECA tanto no âmbito da liberdade de expressão como na proteção do público infanto-juvenil diante de conteúdos entendidos como impróprios. Quando tratamos desta liberdade de opinião e de expressão, nos recordamos do direito à comunicação trazido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e que inclui a busca, a recepção e a transmissão de informações. O que significa, então, garantir a sua cidadania comunicativa enquanto indivíduos críticos e ativos em suas diversas relações com os meios e tecnologias, uma discussão que se inicia com a possibilidade de acesso de crianças e adolescentes aos meios de comunicação e à informação.
Os dados levantados pela pesquisa TIC Kids Online Brasil 2019, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) com 2954 crianças e adolescentes entre nove e 17 anos, mostram que 89% são usuários de internet, mas temos ainda 3 milhões de não-usuários e 1.4 milhão que nunca acessaram a internet. O estudo evidencia as desigualdades econômicas e sociais nas condições de acesso, que ganham novas proporções ao pensarmos no contexto das atividades educacionais em modo remoto por conta das medidas de prevenção à pandemia.
Além do acesso, falamos ainda do desenvolvimento de competências e habilidades que permitam que crianças e adolescentes se posicionem de maneira crítica e responsável diante da enorme quantidade de informações com as quais possivelmente convivem, levando em conta a desordem informacional que vivemos (enquadradas popularmente como fake news) e os discursos de ódio nas redes sociais. Desenvolvimento esse que se amplia para a fluência midiática e digital que lhes fortalece a capacidade expressiva e a participação cívica.
No Brasil, são muitos os programas e projetos de organizações distintas que se voltam ao que chamamos de educomunicação, assumindo a educação com/pela/para a comunicação em diferentes possibilidades de atuação. No entanto, é preciso a concretização de políticas públicas abrangentes que orientem a formação de crianças e adolescentes, assim como de suas famílias e de educadores e gestores educacionais.
O caminho para a cidadania plena de crianças e adolescentes apontado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente passa pela criação e fortalecimento de políticas de educação para a comunicação na garantia do exercício da cidadania comunicativa tão necessária na atualidade.
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Cristiane Parente é Jornalista Amiga da Criança (ANDI/Unicef), Educomunicadora, Professora. Doutora em Comunicação pela Universidade do Minho; Mestre em Comunicação, Cultura e Educação pela Universidade Autônoma de Barcelona; Mestre em Educação pela Universidade de Brasília. Diretora da empresa de consultoria Iandé Comunicação e Educação.
Mariana Ferreira Lopes é Jornalista, Educomunicadora e Professora universitária. Doutora em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina. Diretora da empresa de consultoria Iandé Comunicação e Educação.