Uma das principais características dos noticiários internacionais da Rede Globo é transformar acontecimentos geopolíticos em eventos midiáticos. Ou seja, toda a complexidade de uma determinada realidade é espetacularizada na tela, construindo uma nova narrativa sobre os fatos, aos moldes de uma telenovela, minissérie ou filme, de acordo com o viés ideológico da emissora. Nessa lógica, o último espetáculo (melhor dizendo, evento midiático) foi a eleição presidencial estadunidense.
Essa “minissérie global” é protagonizada pela democrata Kamala Harris – a “mocinha” – e tem como antagonista o republicano Donald Trump – o “vilão”. Ele tem discurso fascistóide, negacionista climático, vai implodir a suposta democracia americana, odeia minorias, divulga fake news e quer se vingar de adversários (o que, de fato, corresponde à realidade). Ela é negra, filha de imigrantes, justa, amiga das minorias e da diversidade. É a Super Kamala, paladina da democracia, que vai salvar os Estados Unidos (quiçá o mundo) da ameaça da extrema direita.
Desse modo, está pronto o cenário do “bem” contra o “mal”.
Mas não basta acompanhar este “épico” à distância. Por isso, a equipe de jornalismo da Rede Globo, liderada por William Bonner, viajou para os Estados Unidos, para acompanhar a vitória de Kamala Harris in loco. Teve até Jornal Nacional apresentado diretamente de Washington. Tudo certo para o grand finale. Nem as melhores produções hollywoodianas produziriam um “happy end” tão especial assim.
No entanto, lembrando o filósofo Manoel Francisco dos Santos, faltou combinar com os russos. Não estou dizendo, literalmente, sobre uma possível interferência do país de Putin no pleito ianque, mas me referindo aos eleitores e delegados estadunidenses, que proporcionaram uma vitória avassaladora a Donald Trump, estragando a festa da Globo.
Divulgado o resultado, um clima de velório tomou conta do jornalismo do Grupo Globo. Os editoriais de outros veículos da grande imprensa – como Folha de S. Paulo e Estadão – seguiram o mesmo rumo. Nem nos Estados Unidos houve tal unanimidade pró-Harris na mídia hegemônica.
Porém, vivemos na era do coachismo. Em toda derrota devemos tirar lições. É preciso ver o copo meio cheio. Segundo o jornalista Wilson Ferreira, em live no canal de YouTube Cinegnose, a vitória de Trump foi utilizada pelos grandes grupos de comunicação como uma espécie de mais-valia semiótica, para chantagear e pressionar o governo Lula a anunciar logo o pacote de cortes de gastos (haja vista o aumento dos juros e queda da bolsa, em decorrência do clima de incerteza global pós-eleição de Trump). É preciso acalmar o mercado.
Também há as ameaças a esquerda sobre o empoderamento da extrema direita no Brasil. “O espantalho do Bolsonaro eis que ressurge, o que cria a paralisia estratégica na esquerda. Não há outra saída: ou é a democracia liberal burguesa ou é o fascismo. É a pedagogia do medo”, ressaltou Wilson.
Por outro lado, chamou bastante a atenção o fato de a imprensa progressista, em sua maioria, tal como a grande mídia, também ter pautado a eleição presidencial dos Estados Unidos a partir das personalidades de Trump e Kamala, e não pelo tradicional viés anti-imperialista da esquerda. Até a torcida entusiasmada pela democrata e o posterior clima de enterro foram praticamente os mesmos. Axé, Kamala!
Quem acompanhou a repercussão da vitória de Trump na imprensa progressista teve a sensação de que o mundo estava acabando. Uma ditadura será instaurada nos Estados Unidos? Apocalipse? Bolsonaro anistiado? Washington vai impor sanções ao Brasil? E agora, quem vai nos defender?
Não poderiam faltar as intermináveis listas apontando os motivos para a derrota de Kamala. Onde foi que erramos? Será o fim do neoliberalismo progressista, que pauta muitos articulistas “de esquerda” por aqui?
As perguntas que realmente deveriam ser feitas, não foram mencionadas. Se Harris, ao invés de Trump, tivesse sido eleita, os Estados Unidos deixariam de apoiar o genocídio do povo palestino? E a postura sobre a guerra Otan/Ucrânia contra a Rússia? E os golpes de Estado mundo afora apoiados pela Casa Branca? E as sanções contra Cuba e Venezuela?
Não precisa ser um gênio em geopolítica para saber que não há divergências consideráveis entre democratas e republicanos sobre essas temáticas. O que há é uma acirrada disputa sobre quem apoiará mais Israel, quem estará por trás de mais golpes ou quem vai impor mais sanções à Venezuela e Cuba.
Nesse jogo macabro, conforme a história recente nos mostra, o partido de Kamala tem levado vantagem. A atual etapa do genocídio em Gaza é o maior exemplo. Além disso, há forte possiblidade de o governo Trump contribuir para encerrar o conflito entre Rússia e Otan/Ucrânia. Claro que ele não fará isso por questões humanitárias, mas pragmatismo geopolítico.
Enfim, o mundo não fica melhor nem pior com Trump ou Kamala. Ficaria muito melhor sem o (decadente) imperialismo estadunidense, maior inimigo dos povos oprimidos do planeta. Globo e grande mídia apoiarem a candidata da ala principal do imperialismo é mais do que esperado. Já sobre parcela da imprensa progressista abraçar totalmente o Partido Democrata, sabe-se lá a quais interesses atende.
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Francisco Fernandes Ladeira é Doutor em Geografia pela Unicamp, especialista em Jornalismo pela Faculdade Iguaçu e autor do livro “A ideologia dos noticiários internacionais” (Editora CRV).