Três dados desta eleição, quando pensados em rede, assustam por indicar o evidente: a polarização entre o Bolsonaro e Haddad, o alinhamento dos votos entre o Bolsonaro e seus candidatos ao Congresso — algo que não ocorreu nem com FHC nem com Lula — e a repulsa a vários líderes de partidos, independente da ideologia partidária, pelos brasileiros, apontam para o prenúncio de uma violação do sistema democrático.
Há uma clara direção contra o sistema instituído, fazendo com que uma figura grosseira como a de Bolsonaro seja capaz de canalizar o conservadorismo brasileiro e todos seus preconceitos, violências e rancores de classe. Este ímpeto reacionário pode ter gerado uma reação contrária dentro do espaço progressista, que, por sua vez, teria identificado no PT o polo capaz de se opor a esta onda. Esta saída não deixa de ser uma surpresa. O Partido dos Trabalhadores, mesmo tendo sofrido ataques sistemáticos da mídia e sido fragilizado pelo judiciário nesses últimos 4 anos com a prisão de vários dirigentes, ainda se colocou no segundo turno e viu sua bancada no congresso relativamente preservada.
Que tipo de força foi necessária para manter o PT como protagonista depois desses últimos anos de abalo, senão a força explícita de uma ultradireita antidemocrática? Talvez, a preliminar vitória do PT nessas eleições, em comparação ao extermínio sofrido pelo PSDB e a clara redução do PMDB, se explique melhor pela ameaça ao estilo de vida democrático do que por uma suposta capacidade do partido de se mostrar imune ao seu pior momento de sua história.
Este mecanismo de defesa social contribuiria para esclarecer a incapacidade constrangedora de Geraldo Alckmin de se viabilizar como real opção aos eleitores, mesmo tendo uma ampla coligação de partidos e o governo do Estado de São Paulo como vitrine, o fracasso de Ciro Gomes de se colocar como uma saída progressista, mesmo exibindo o programa de governo mais detalhado entre os candidatos ou mesmo a queda do aguerrido Guilherme Boulos no final do processo, que, por definição, deveria ser o antagonista de Bolsonaro, se tomarmos como parâmetro a idéia de polarização radical, de um simples antagonismo produzido pela radicalização eleitoral. Uma ultradireita deveria impor como seu correspondente uma esquerda radical.
O PT parece ter sido competente nesta disputa justamente por ser o único partido político brasileiro com uma base social. Longe das simplificações que povoam a mídia tradicional e as redes sociais, o PT mostra-se, pelos 13 anos de governo federal, um partido moderado, cioso, enquanto instituição, dos valores democráticos e profundamente ligado à sociedade, através de sua base social; os trabalhadores. Previsibilidade que decepcionou sua ala mais esquerdista e o aproximou de um governo mais liberal e conservador do que sua história de lutas indicava.
Esta previsibilidade parece ter permitido que em um momento de ameaça à democracia, a despeito de orientações políticas, uma parte da sociedade visse em Haddad sua última barreira à barbárie política e pode indicar também, no de um fracasso do segundo turno, o início de seu real declínio. Isso porque não foi a vitalidade interna do partido que o alçou a este patamar atual, mas o desespero de parte da sociedade frente ao perigo, perigo este não combatido pelos próprios governos petistas.
Contra a frágil argumentação de que a democracia brasileira não está em risco, que as instituições jurídico-sociais não estão ameaçadas, a sociedade que não cerrou fileiras aos ataques capitaneados por Bolsonaro contra o sistema, contra a liberdade sexual, contra os intelectuais e artistas, contra as mulheres e contra o povo mais humilde, buscou, solitariamente, um ator político competente para se opor a esta onda. Houve uma compreensão quase que visceral, não refletida, de que nossa configuração republicana era temerária e estava à perigo como nunca antes, ao menos desde do golpe empresarial militar de 1964.
O raciocínio daqueles que veem a democracia como robusta justamente por existir há 30 anos no país expõe, quase como uma caricatura, em sua argumentação cronológica, a imaturidade histórica de nosso Estado civil. Neste sentido, a declaração dos políticos do PSOL, neste segundo turno, ao firmarem o apoio em Haddad, é um reconhecimento do movimento que instituiu a polarização entre Bolsonaro e Haddad: não se trata de um apoio circunstancial ao programa do PT, mas uma manifestação irrestrita à democracia.
A dimensão solitária presente na escolha do eleitorado no primeiro turno, abandonados pela recusa dos partidos em formarem uma frente ampla, transferiu-se, como tragédia, para as neutralidades impostas na prática pelo PSDB, pelo PDT e pela REDE, ao ignorarem o risco iminente e desconhecendo, em seus atos estranhamente apolíticos — afinal, um partido político não deveria ser neutro em uma eleição que é, por força de lei, obrigatória —, o anseio de parte da população expresso na votação de Haddad. Refletindo antes da investigação dos analistas eleitorais, já é possível identificar uma mudança na base de eleitores do PT das últimas campanhas para esta, o que corroboraria a tese deste movimento não orientado de parte do eleitorado como uma versão rudimentar e deslocada de sua concepção original dos “freios e contrapesos” montesquianos.
Tomando como pressuposto de que não houve manipulação nas eleições — dimensão que nunca pode ser resolvida, a de mero pressuposto, em uma sociedade como a brasileira —, junta-se a este cenário as sistemáticas derrotas de líderes tradicionais da política brasileira. O largo espectro ideológico desses fracassos eleitorais exclui da análise qualquer recurso ao “antipetismo” como justificativa capital. O “antipetismo” não explica derrotas de nomes tão díspares como Roberto Requião, Cesar Maia, Romero Jucá, Jorge Viana, Agripino Maia, Dilma Rousseff, Cassio Cunha Lima, Cristovam Buarque, Eduardo Suplicy, por exemplo.
Por outro lado, buscar uma saída a este incômodo no argumento do simples desejo da população pela renovação na política obscurece um dado preocupante na formação das novas casas legislativas: seu caráter militarista e sua tendência ao campo religioso, prioritariamente evangélico. Há um indicativo manifesto nos eleitos de uma oposição à idéia de Estado laico e civil, fazendo com que se caracterize, não como um repúdio ao Lula, mas, assustadoramente, um confronto aos valores garantidos no preâmbulo da Constituição Federal, de uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.
Escapando de uma análise calcada nos desejos individuais, nas intenções circunstanciais de um eleitorado ou outro, do varejo da pequena política, talvez seja possível entrever com mais clareza o jogo que opera neste momento. A polarização que se configurou é menos a causa da crise política instaurada no país, e mais um efeito de uma tentativa ainda possível de evitar a quebra democrática em nossa sociedade. É um índice de um organismo ainda vivo, em vias de um colapso. A ausência de polarização seria uma certidão de óbito antecipada de nossa democracia.
Por isso, não se deve buscar superá-la, em nome de valores estranho à política efetiva como a paz social, o amor entre homens e a harmonia entre os cidadãos, mas antes encará-la como uma última saída a esta barbárie que já mostra sua face violenta nas periferias das cidades, nas agressões virtuais, na intimidação nas ruas. A paz, o amor e a harmonia não são meios políticos, mas objetivos sociais. Defender uma política estruturada na discriminação, no preconceito e no autoritarismo, chega ser um escárnio. Não é possível ter uma posição conservadora no Brasil, onde a sociedade é forjada na desigualdade, na exploração e na injustiça, sem que isso se constitua uma afronta a todo e qualquer marco civilizatório democrático.
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Marcelo S. Norberto é professor e pesquisador do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Doutor em filosofia, atua na área de Ética e Filosofia Politíca, com ênfase em Filosofia Francesa Contemporânea. Autor do livro “O drama da ambiguidade”, publicado pela Editora Loyola e de diversos artigos em revistas especializadas.