Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Aviso à Rede Globo: Não estamos mais em 1989

O que mais impressiona na entrevista de Fernando Haddad ao Jornal Nacional é a ausência de qualquer regra básica para o desenrolar das perguntas e respostas. O jornalismo da Globo erra no conceito: entrevista não é debate que, por sua vez, demanda outro regime de regulamentos, tanto tácitos quando técnicos.

O jornalismo da Globo deve achar que está cumprindo seu papel de ‘emparedar’ o entrevistado, o que seria correto, do ponto de vista da ‘produção de contraditório’. Talvez — e sendo muito benevolente —, eles tenham se espelhado no programa ‘Upfront’ da TV Al Jazeera, apresentado pelo jornalista Mehdi Hasan.

Hasan costuma ser mesmo agressivo e inconveniente com seus entrevistados, cortando suas respostas e perturbando o ‘sentido’ geral das teses que eles lhe apresentam, fazendo o papel de ‘inocente retórico’ e de advogado do diabo.

Hasan, no entanto, não tem fobias e nem demonstra defender uma posição política a priori. Seu rabo é preso a sua própria inconveniência cênica e suas perguntas estão a serviço de uma prospecção legítima. Em suma, o que ele faz é jornalismo.

O caso de William Bonner e de Renata Vasconcellos é diferente. Eles acusam predisposição ideológica e má vontade. Censuram as respostas de maneira violenta. Lembram um pouco Sergio Moro em seus interrogatórios. Como Moro não entende as complexidades no funcionamento de todo e qualquer governo, ele fantasia e flana nas próprias elucubrações subjetivas a respeito do que ali se discute. Como ele é juiz e tem o poder da decisão, prevalece o simulacro (a mentira).

A fragilidade de Bonner e Vasconcellos chega a assustar. A insistência no discurso monotemático (só falaram de corrupção), o tom pesado de indignação — muito semelhante ao tom de ódio que devastou o tecido social brasileiro – e a absoluta ausência de um procedimento ritual que é respeitar a presença e a pessoa do entrevistado — ainda que ele represente uma ameaça real à operação desvirtuada de uma emissora de televisão – demonstraram incompetência associada a deseducação.

Tecnicamente, portanto, os apresentadores continuam sendo o que são: apresentadores. Eles não têm lastro nem inteligência nem educação nem estatura para levar adiante uma entrevista com qualquer personagem minimamente densa da cena política. Essa percepção é quase unanimidade até entre jornalistas experientes que já publicaram resenhas desfavoráveis aos predicados do ‘casal’.

Não custa lembrar a performance sofrível de Renata Vasconcellos diante do próprio Bolsonaro, um candidato que não é conhecido por sua cancha intelectual. Bolsonaro fez a jornalista expor toda a sua subserviência quando a obrigou a comentar a discrepância entre o salário dela e o salário de seu companheiro de bancada. A apresentadora ignorou deliberadamente o tema, o que tornou toda a cena constrangedora.

Esse é um ponto fraquíssimo daquele duo de apresentadores. Eles têm déficits de ordem linguístico-pragmática, para além da incompetência jornalística. São só apresentadores que leem teleprompter.

Mal conseguem dominar regras básicas de ‘etiqueta’ conversacional, como permitir a seu interlocutor a finalização das sentenças gramaticais. Em português claro, trata-se não mais não menos do que ‘grosseria’.

A linguística tem várias teses a respeito da competência conversacional dos falantes de uma língua. A mais célebre delas vem da teoria pragmática da linguagem, que tem nos filósofos John Searle, John Austin e Paul Grice suas inspirações mais notórias.

O “Princípio da Cooperação Conversacional” de Grice deveria ser estudado em todas as faculdades de jornalismo. Muito mais avançado que o esquema comunicacional de Roman Jakobson, o Princípio da Cooperação visa compreender e garantir que uma sucessão de atos de fala tenha a mínima chance de ser interpretado por ambos os partícipes de uma conversação (ou de uma entrevista).

Muito simples e elegante, a proposição teórica é composta por quatro ‘máximas’:

1) Máxima da quantidade: dê exatamente a quantia de informação necessária;

2) Máxima da qualidade: diga apenas o que você acredita ser a verdade;

3) Máxima da relação: seja relevante;

4) Máxima do modo: seja sucinto (Grice, 1975: 45 – tradução minha).

Nenhum desses princípios foi seguido por Bonner ou por Vasconcellos. Mais do que isso, eles foram flagrantemente violados: eles 1) estenderam-se abusivamente nas formulações, misturando premissas temáticas 2) apresentaram pressupostos largamente discutíveis e partidarizados, 3) produziram muita irrelevância ao concentrar em apenas um tema todo o protocolo de arguição e 4) foram excessivamente prolixos, com perguntas extensas e mal organizadas (tomando 60% do tempo total da entrevista).

Note-se que o filósofo Paul Grice nem elenca uma ‘quinta máxima’ que poderia muito bem ser representada pela competência de um ‘falante’ em ter o ‘bom senso’ de não interromper a fala de seu interlocutor pelo simples fato de que se trata de uma premissa básica demais para que seja tecnicamente arrolada. É um caso, a rigor, mais pertencente ao campo da ‘educação’ formal básica do que da ciência cognitiva.

De sorte que a relevância da entrevista migrou da esfera do debate de ideias para a esfera da resistência mental do entrevistado. Haddad teve que, basicamente – e diante da incompetência meridiana de seus entrevistadores –, reformular todas as questões e respondê-las em seguida em tempo exíguo e sendo interrompido a todo instante. E isso por uma questão muito simples: por respeito ao espectador.

A força ‘conversacional’ de Fernando Haddad foi, portanto, apresentada ao público e ao eleitor de maneira bastante bem sucedida. Aliás, essa dimensão da linguagem – que é mais sutil e inconsciente – tem muito mais apelo e poder diante de um espectador saturado de promessas vazias e contemporizações partidarizadas de entrevistadores pouco competentes.

O eleitor viu um Fernando Haddad que lhe dedica profundo respeito pragmático, além de ser exposto a dois apresentadores que lhe relegam profunda indiferença quando negam o direito de resposta de alguém que, afinal, é o convidado do programa – e merecia ser tratado com a mínima deferência.

Renata Vasconcellos e William Bonner agiram como interrogadores policiais (não admira que o tema e o tom tenham sido policialescos), inquisidores amorais, torturadores intelectuais. O que o espectador testemunhou foi a hiper exposição de um candidato à violência discursiva de uma emissora de televisão, tão bem encarnada na pele de dois apresentadores.

Pragmaticamente, não poderia ter sido melhor para Haddad, que se manteve extraordinariamente respeitoso, técnico e firme em suas posições, atendendo, de maneira solitária, as quatro máximas consagradas da conversação.

A Globo, em seu desespero de continuar destruindo um partido político, vai afundando cada vez mais, não apenas na insolvência de sua operação jornalística (que tem um custo muito alto em um momento de transição de plataformas tecnológicas), mas também na desconexão com a realidade discursiva de um país.

A Globo não representa mais nenhum segmento relevante da população brasileira. Ela vai, naturalmente, sendo empurrada para a posição de pária, dada sua negação dos protocolos técnico-linguísticos de construção da realidade, como sua negação da própria realidade.

Promover a manutenção de um golpe de estado não é tarefa trivial, ainda mais com zonas de informação que escapam ao controle institucional — a internet.

É importante avisar a Globo e seus jornalistas: nós não estamos mais em 1989.

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Gustavo Conde é mestre em linguística pela Unicamp